Opinião
Visita indigesta
O chanceler Lavrov representa um regime sanguinário. Lula erra: não há equivalência de responsabilidade entre a Rússia e a Ucrânia
O chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, é o principal escudeiro de Vladimir Putin, maior criminoso de guerra do século XXI. Putin mandou cometer todo tipo de atrocidade na Ucrânia. Destruir, roubar, estuprar, assassinar… Violou todos os tratos internacionais, da ONU às Convenções de Genebra, a ponto de ter sua prisão decretada pelo Tribunal Penal Internacional. Putin mandou sequestrar crianças ucranianas para que fossem adotadas na Rússia, impondo um cruel processo de russificação. A barbárie desse crime foi cometida por Hitler, que fez o mesmo com crianças polonesas. Os generais da ditadura argentina também mandaram sequestrar crianças, filhas de presos e assassinados da ditadura.
O regime de Putin, no que diz respeito à situação interna da Rússia, expressa uma das piores ditaduras. Ele simplesmente manda prender, envenenar e assassinar opositores e críticos. No mesmo dia em que Lavrov foi recebido pelo Itamaraty e por Lula, o jornalista Vladimir Kara-Murza foi condenado a 25 anos de prisão, depois de duas tentativas de envenenamento, por criticar a guerra na Ucrânia. Jornalistas e políticos opositores, se não foram assassinados, estão presos ou exilados. Milhões de russos saíram do país por não suportar a tirania.
Putin promove recrutamentos forçados entre as minorias étnicas para que os jovens morram em defesa de sua ambição e de sua vaidade. São centenas de milhares de russos e ucranianos que desperdiçam a vida por causa de uma guerra cruel e desnecessária. Putin e seu sócio no crime, Yevgeny Prigozhin, financiador do grupo neonazista Wagner, tiram milhares de condenados das prisões para cometerem roubos, estupros e assassinatos na Ucrânia.
Por tudo isso e por muitas outras coisas não ditas aqui, a visita de Lavrov foi indigesta, repugnante. Quem votou em Lula e compreende as vastas implicações desta guerra sente-se triste e desolado. Estamos diante de uma guerra que nunca encontrará o beneplácito da história. Nunca encontrará qualquer justificativa na consciência moral da humanidade. A Rússia tinha e tem demandas legítimas em relação ao Ocidente? Sim. Mas essa guerra não se refere a essas demandas. Quem leu os discursos de Putin antes da invasão, na véspera e durante sabe que ele se move por uma ambição imperial, de anexar a Ucrânia, de destruir a nacionalidade ucraniana, cujo um dos artífices foi o próprio Lenin.
Lula estava no caminho correto ao querer encontrar um meio para alcançar a paz. Mas se perdeu numa sucessão de declarações equívocas que o colocaram em linha com Putin. Não há nenhuma equivalência de responsabilidade entre a Rússia e a Ucrânia. A guerra era desnecessária e existia um vasto espaço de possibilidades para negociar os conflitos. Não há equivalência quando há um agressor e um agredido, quando há estupradores e mulheres e crianças estupradas, quando há assassinos e assassinados. Não há equivalência quando há um país destruído, com milhões de refugiados, e um país com seu território intacto. A primeira atitude de um líder justo consiste em condenar a agressão e se solidarizar com as vítimas dos crimes e atrocidades.
Ao estabelecer a equivalência de responsabilidades Lula foi perdendo a condição de neutralidade. Perdeu-a mais ainda ao sugerir que a Ucrânia deveria ceder a Criméia. Um mediador não é parte nem juiz. Não é um tribunal que decide quem deve ceder o quê. Um mediador é um facilitador do diálogo. O resultado da mediação consiste numa autocomposição das partes em conflito. Mas são elas que se autocompõem. Não é o mediador quem faz a composição.
A crítica que Lula faz aos Estados Unidos e à Europa por fornecerem armas à Ucrânia é a mesma crítica feita por Donald Trump. Putin é um aliado de primeira hora de Trump, assim como de Marine Le Pen e de outros líderes de extrema-direita. Queira-se ou não, intencionalmente ou não, o discurso de Lula favorece Trump em detrimento dos democratas nos EUA.
O mundo vive hoje uma polaridade entre democracias e ditaduras. Sem se fechar ao diálogo e ao multilateralismo, o governo brasileiro precisa escolher um campo. O governo foi vítima de uma tentativa de golpe. O governo Biden teve uma posição fundamental, tanto para garantir o resultado das eleições quanto para bloquear as tentativas golpistas. Se Trump fosse o presidente, o golpe teria triunfado no Brasil? Talvez. Se tivesse triunfado, onde estariam os líderes do PT hoje? Em Paris? Em Santiago? Em Buenos Aires?
O governo e o Itamaraty seguem por um caminho errado. Em política, o que está feito está feito e não pode ser desfeito. Mas sempre é possível começar de novo, abandonar o caminho errado e retomar o bom caminho. É essa correção de rumos que se espera do governo brasileiro. •
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Visita indigesta’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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