Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Visita indigesta

O chanceler Lavrov representa um regime sanguinário. Lula erra: não há equivalência de responsabilidade entre a Rússia e a Ucrânia

O chanceler russo, Sergei Lavrov. Foto: Kirill KUDRYAVTSEV/POOL/AFP
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O chanceler da Rússia, Sergei ­Lavrov, é o principal escudeiro de Vladimir Putin, maior criminoso de guerra do século XXI. P­utin mandou cometer todo tipo de atrocidade na Ucrânia. Destruir, roubar, estuprar, assassinar… Violou todos os tratos internacionais, da ONU às Convenções de Genebra, a ponto de ter sua prisão decretada pelo Tribunal Penal Internacional. Putin mandou sequestrar crianças ucranianas para que fossem adotadas na Rússia, impondo um cruel processo de russificação. A barbárie desse crime foi cometida por Hitler, que fez o mesmo com crianças polonesas. Os generais da ditadura argentina também mandaram sequestrar crianças, filhas de presos e assassinados da ditadura.

O regime de Putin, no que diz respeito à situação interna da Rússia, expressa uma das piores ditaduras. Ele simplesmente manda prender, envenenar e assassinar opositores e críticos. No mesmo dia em que Lavrov foi recebido pelo ­Itamaraty e por Lula, o jornalista ­Vladimir Kara-Murza foi condenado a 25 anos de prisão, depois de duas tentativas de envenenamento, por criticar a guerra na Ucrânia. Jornalistas e políticos opositores, se não foram assassinados, estão presos ou exilados. Milhões de russos saí­ram do país por não suportar a tirania.

Putin promove recrutamentos forçados entre as minorias étnicas para que os jovens morram em defesa de sua ambição e de sua vaidade. São centenas de milhares de russos e ucranianos que desperdiçam a vida por causa de uma guerra cruel e desnecessária. Putin e seu sócio no crime, Yevgeny Prigozhin, financiador do grupo neonazista Wagner, tiram milhares de condenados das prisões para cometerem roubos, estupros e assassinatos na Ucrânia.

Por tudo isso e por muitas outras coisas não ditas aqui, a visita de Lavrov foi indigesta, repugnante. Quem votou em Lula e compreende as vastas implicações desta guerra sente-se triste e desolado. Estamos diante de uma guerra que nunca encontrará o beneplácito da história. Nunca encontrará qualquer justificativa na consciência moral da humanidade. A Rússia tinha e tem demandas legítimas em relação ao Ocidente? Sim. Mas essa guerra não se refere a essas demandas. Quem leu os discursos de Putin antes da invasão, na véspera e durante sabe que ele se move por uma ambição imperial, de anexar a Ucrânia, de destruir a nacionalidade ucraniana, cujo um dos artífices foi o próprio Lenin.

Lula estava no caminho correto ao querer encontrar um meio para alcançar a paz. Mas se perdeu numa sucessão de declarações equívocas que o colocaram em linha com Putin. Não há nenhuma equivalência de responsabilidade entre a Rússia e a Ucrânia. A guerra era desnecessária e existia um vasto espaço de possibilidades para negociar os conflitos. Não há equivalência quando há um agressor e um agredido, quando há estupradores e mulheres e crianças estupradas, quando há assassinos e assassinados. Não há equivalência quando há um país destruído, com milhões de refugiados, e um país com seu território intacto. A primeira atitude de um líder justo consiste em condenar a agressão e se solidarizar com as vítimas dos crimes e atrocidades.

Ao estabelecer a equivalência de responsabilidades Lula foi perdendo a condição de neutralidade. Perdeu-a mais ainda ao sugerir que a Ucrânia deveria ceder a Criméia. Um mediador não é parte nem juiz. Não é um tribunal que decide quem deve ceder o quê. Um mediador é um facilitador do diálogo. O resultado da mediação consiste numa autocomposição das partes em conflito. Mas são elas que se autocompõem. Não é o mediador quem faz a composição.

A crítica que Lula faz aos Estados Unidos e à Europa por fornecerem armas à Ucrânia é a mesma crítica feita por ­Donald Trump. Putin é um aliado de primeira hora de Trump, assim como de Marine Le Pen e de outros líderes de extrema-direita. Queira-se ou não, intencionalmente ou não, o discurso de Lula favorece Trump em detrimento dos democratas nos EUA.

O mundo vive hoje uma polaridade entre democracias e ditaduras. Sem se fechar ao diálogo e ao multilateralismo, o governo brasileiro precisa escolher um campo. O governo foi vítima de uma tentativa de golpe. O governo Biden teve uma posição fundamental, tanto para garantir o resultado das eleições quanto para bloquear as tentativas golpistas. Se Trump fosse o presidente, o golpe teria triunfado no Brasil? Talvez. Se tivesse triunfado, onde estariam os líderes do PT hoje? Em Paris? Em Santiago? Em Buenos Aires?

O governo e o Itamaraty seguem por um caminho errado. Em política, o que está feito está feito e não pode ser desfeito. Mas sempre é possível começar de novo, abandonar o caminho errado e retomar o bom caminho. É essa correção de rumos que se espera do governo brasileiro. •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Visita indigesta’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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