Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

O bode expiatório do Ministério Público

O rigor do MP com membros do funcionalismo ou a agentes políticos raramente vale quando se trata de desvios perpetrados por seus membros

O ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol. Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
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Entre setembro e o início de outubro de 2021, o Congresso avançou nos detalhes finais da discussão e aprovação de uma nova legislação sobre a improbidade administrativa. Logo isso despertou a ira dos lavajatistas de sempre e de membros do Ministério Público, como sempre.

Para ambos, a nova legislação permitiria a corrupção desenfreada e produziria a impunidade de agentes públicos que atuam de forma não republicana, para usar um eufemismo. A motivação da mudança foi apontada por esses próceres da moralidade como decorrendo da busca de autoproteção por parte dos políticos em geral e por alguns deles em particular – como o presidente da Câmara, Arthur Lira, que de fato tem uma série de rolos a desembaraçar.

O real motivo para a mudança, contudo é bem mais prosaico. É fato notório entre membros da administração pública que vincular o próprio CPF a certas decisões corriqueiras representa risco considerável para o agente governamental, menos por sua má-fé e mais por interpretações um tanto quanto draconianas que agentes dos órgãos de controle fazem dos intentos desses incautos.

O MP se converteu numa instituição que não apenas tem o feitio de um quarto poder de Estado, mas também de um poder completamente irresponsável

Assim, muitas decisões necessárias e corretas da administração pública não são tomadas pelo medo que agentes públicos têm do que pode advir no âmbito judicial – ou mesmo na antessala dele, nos Termos de Ajustamento de Conduta e outros acertos promovidos pelo MP que dispensam uma sentença judicial. Esse medo decorre do conhecimento que esses agentes têm de casos pregressos, que atingiram a seus pares ou a eles mesmos, além das ameaças que ciosos membros do Ministério Público fazem àqueles que não atuam segundo suas crenças ou preferências, escoradas em intepretações discutíveis da legislação e na vaguidão que a antiga lei da improbidade abrigava. Prefeitos e servidores públicos Brasil afora que o digam.

Tal rigor dirigido a membros do funcionalismo ou a agentes políticos, contudo, raramente vale quando se trata de desvios perpetrados por integrantes do próprio Ministério Público. Veja-se o caso do severíssimo procurador da República de Curitiba, Deltan Dallagnol, um herói da luta anticorrupção na percepção lavajatista. Em agosto de 2020 o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu não dar seguimento a um processo administrativo disciplinar aberto contra ele devido ao famigerado Power Point em que apontava o ex-presidente Lula como cerne dos piores males de corrupção neste País tropical em sua época.

Aberto apenas um dia após a apresentação do slide famoso, o processo teve seu julgamento adiado por nada menos que 42 vezes. Vale repetir: quarenta e duas vezes em menos de quatro anos. Assim, Dallagnol, um crítico acerbo do princípio da prescrição (para os outros) teve uma prescrição a lhe amparar – justamente no âmbito do órgão de suposto autocontrole que os membros do Ministério Público têm para chamar de seu. Para isso ainda contou com o prestimoso auxílio de uma decisão do ministro do STF, Luiz Fux – um dos maiores entusiastas do lavajatismo na corte suprema.

O que merece destaque aqui, contudo, é a malemolência do CNMP no julgamento dos membros da corporação. Em artigo que escrevi com Fábio Kerche e Vanessa Elias de Oliveira, saído na Revista de Administração Pública, analisamos os processos sob a responsabilidade do Conselho. Mostramos que, entre 2010 e 2019, “somente 2,1% dos casos resultaram em alguma pena. Entre elas, quase metade (47%) foi relativamente leve, como censura, advertência ou admoestação verbal”. Ou seja, é bem difícil que algum membro da corporação seja punido por seus deslizes; Dallagnol não é exceção e nem seu caso é mera anedota.

É desse contexto, em que alguns agentes públicos são levados ao patíbulo (ou ameaçados com isso), enquanto outros contam com a magnanimidade de seus colegas, que proveio a proposta de reformulação do CNMP, originalmente formulada pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Ela, de forma muito tênue, retoma um velho debate, que antecedeu a reforma do sistema de justiça de 2004: o controle externo à corporação de juízes e promotores.

Essa ideia foi deixada pelo caminho no meio do processo que levou à aprovação da Emenda Constitucional 45/2004. As corporações jurídicas foram bem-sucedidas em sua pressão sobre o Congresso, alegando que qualquer controle externo violaria a independência do Judiciário e do Ministério Público. Assim, o acalentado “controle externo” deu lugar a um controle interno com pitadas de participação de agentes alheios à corporação – sem, contudo, alterar sua natureza e funcionamento.

O problema é que, como se viu desde então, abusos não são efetivamente coibidos. Pelo contrário, o CNMP serve mais para reforçar a autonomia do Ministério Público e seus membros do que para refrear suas exorbitâncias. Mais que isso, o MP se converteu numa instituição que não apenas tem o feitio de um quarto poder de Estado, mas também de um poder completamente irresponsável – algo talvez comparável apenas àquilo de que dispôs sua Majestade Imperial, com o Poder Moderador, durante nosso período monárquico. Como é possível, num Estado Democrático de Direito, que um ente estatal seja completamente irresponsável e capaz acossar outros agentes estatais sem qualquer freio ou moderação institucionais?

A gritaria de membros do MP e de suas associações contra a proposta não causa surpresa. Ela já ocorreu noutras ocasiões – inclusive à época da discussão sobre o que veio a ser a EC 45/2004 – em que algum tipo de limite e controle democráticos foram esboçados. Aliás, também não admira que qualquer corporação, quando vê ameaçados seus privilégios, cerre fileiras em sua defesa. Nisso o MP não se distingue do Poder Judiciário e nem de outros segmentos do estamento estatal. Portanto, não devemos nos impressionar com isso e nem dar muita deferência a mais esta tentativa de apresentar interesses particularistas como sendo gerais e a regalia de um grupo como indispensável para o bem comum.

No meio desse turbilhão, fomos surpreendidos com uma decisão incomum do CNMP: determinou-se a demissão do procurador Diogo Castor de Mattos, colega de Dallagnol na força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e responsável por um outdoor de autopromoção da operação, com a foto de todos os homens (no masculino mesmo) que compunham o time, bem em frente ao aeroporto da capital paranaense. Por placar apertadíssimo (seis votos a cinco) o Conselho reconheceu que o doutor Castor violou seus deveres funcionais e incorreu em improbidade administrava. Quem diria, improbidade!

O placar apertado, contudo, merece esclarecimento. Como observou Reinaldo Azevedo em sua coluna no UOL, todos os cinco votos em defesa do procurador foram de membros do Ministério Público que ocupam cadeiras no Conselho. Dos seis votos a favor da demissão, em consonância com o parecer da relatora do caso, a advogada Fernanda Marinela, quatro provieram de membros externos ao MP: duas indicadas pela OAB e dois pelas casas do Congresso Nacional. Apenas outros dois votos vieram de representantes do próprio MP: um do oriundo do Ministério Público Militar e o outro, o voto de minerva, do presidente do Conselho, o Vice-Procurador Geral da República, Humberto Jacques de Medeiros. Este, aliás, presidia os trabalhos do CNMP como lugar-tenente de Augusto Aras que, como se sabe, não é dos mais benquistos em sua corporação e nem, especialmente, entre os procuradores da Lava Jato – e não é pelos melhores motivos que isso ocorre.

Foto: Divulgação/CNMP

É difícil acreditar que uma decisão tão dura – incomum para os parâmetros do Conselho – teria sido tomada num contexto diferente do atual, em que o Congresso pretende alterar sua composição e funcionamento, dando-lhe mais efetividade como órgão de controle e, particularmente, de controle democrático. Embora se chame Castor, o procurador punido se tornou um bode – no caso, expiatório – escolhido por membros da corporação para tentar convencer a sociedade de que não seria verdade que o CNMP não pune procuradores e promotores que façam por merecer – pressionando assim o Congresso. Difícil levar a sério tal encenação.

A propósito, vale destacar que dois dos membros do Conselho contrários à demissão, um deles – o corregedor do órgão – propôs que a punição se restringisse apenas a uma suspensão de três meses. Um colega seu foi ainda mais magnânimo: considerou que metade de um mês já bastaria – ainda mais porque o doutor Castor andava deprimido à época do outdoor, pobrezinho. Quem poderia imaginar que depressão concedesse salvo-conduto para a improbidade, não é mesmo? Bem, se o improbo depressivo for membro do ministério público, dá-se um jeitinho – acreditam alguns. Ao que parece, a régua com que certos membros do MP medem as ações de improbidade de outros agentes públicos é diferente daquela usada para mensurar transgressões equivalentes quando praticadas por colegas.

E, para coroar essa cantilena em defesa de privilégios corporativos e irresponsabilidade funcional, Dallagnol, aquele mesmo que se mancomunou com um juiz declarado suspeito pelo STF e se beneficiou pela prescrição dos processos abertos contra ele no CNMP, vem a público criticar as mudanças propostas, dizendo que o faz em defesa da luta contra a corrupção. Quem quiser que acredite.

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O episódio do Fora da Política Não há Salvação desta semana, no YouTube?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> e no podcast, tratou exatamente deste tema, com a participação de Fábio Kerche.

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