Educação

USP barra a matrícula de (mais) um aprovado na Fuvest por não considerá-lo pardo

André Correia Lopes, de 18 anos, obteve aprovação para o curso de Letras, porém, a banca de heteroidentificação alegou que ele ‘não cumpre os requisitos necessários para usufruir’ das cotas raciais

O estudante André Correia Lopes e tia materna — Foto: Acervo pessoal
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“Depois dessa decisão, eu tenho me sentido bem confuso sobre tudo. Eu passei a minha vida toda me declarando enquanto pardo, e aí dizem que eu não sou, então eu fico um pouco ansioso e sem saber direito o que fazer”. 

O desabafo é do estudante André Correia Lopes, de 18 anos, que teve sua matrícula barrada na Universidade de São Paulo (USP), após passar pela banca de heteroidentificação.

O processo de avaliação foi criado para evitar fraudes nas ofertas de vagas por cotas raciais, mas vem, repetidamente, colocando em xeque a identidade de alunos negros. 

Oriundo de escola pública da periferia de São Paulo, Lopes estava prestes a ser o primeiro entre os irmãos a entrar no Ensino Superior. Em 26 de janeiro, recebeu a notícia que havia sido aprovado na primeira chamada da Fuvest para o curso de Letras. 

Após um ano de estudos, sem respaldo de um curso pré-vestibular, ele conseguiu uma das 45 vagas destinadas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em um dos vestibulares considerados mais difíceis da capital paulista.

No entanto, foi convocado para a entrevista presencial da banca destinada a confirmar a autodeclaração no dia 5 de fevereiro. 

Lopes contou à CartaCapital que a primeira surpresa foi ter sido chamado. Afinal, não conhecia os procedimentos de heteroidentificação no caso de cotas raciais

Ainda sim, conforme a resolução que regulamenta a banca, os aprovados na Fuvest, só são convocados para uma entrevista presencial, se a autodeclaração não for confirmada através da dupla verificação da foto do aluno.

No dia da entrevista, pediram para ele ler em voz alta uma autodeclaração de pertença racial, um procedimento padrão que foi gravado à frente dos cinco membros da banca. Lopes ficou menos de cinco minutos na sala e foi embora.

No dia seguinte, recebeu por e-mail a decisão que sua autodeclaração enquanto pardo foi negada pelo Conselho de Inclusão e Pertencimento (CoIP), responsável pela aferição da autodeclaração dos estudantes.  

Em avaliação do candidato, a banca não identificou nenhuma característica física de uma pessoa negra ou parda”, diz trecho da decisão enviada ao aluno. 

Com apenas dois dias para pedir recurso, Lopes redigiu por conta própria uma carta onde questionou a decisão e explicou: 

“Apesar de não ter todas as características da raça negra em evidência, nunca fui considerado branco, e sim pardo, o que pode ser ressaltado pela minha pele “morena” desde o nascimento e pela descendência de meu pai”, escreveu o estudante.

E completou: “Declarei-me como pertencente à etnia negro/pardo pois sou descendente de mãe branca (já falecida) e pai negro, uma vez que nunca fui considerado branco conforme a própria orientação do IBGE“.

Foi anexada ainda, uma foto da família e o RG do pai:

Da esquerda para a direita, irmã, pai, André ao centro, irmão e madrasta do estudante — Foto: Acervo pessoal

No entanto, mesmo com recurso, a USP não concedeu direito a uma segunda entrevista, de forma virtual para nova análise do candidato, e negou que ele tivesse direito a vaga pela reserva de cotas. 

Foto: Reprodução/Acervo pessoal

A USP explica que a análise de autodeclaração é “estritamente fenotípica” considerando apenas: “cor da pele, os cabelos e a forma da boca e do nariz” dos candidatos.

No entanto, em nenhum momento, ao negar a autodeclaração do estudante, a Universidade concede acesso ao relatório, o documento que detalha a decisão da comissão — que é basicamente como o estudante é descrito e explicaria o porquê ele foi rejeitado pela banca. 

A medida é questionada pela advogada do estudante, Anália Ricardo da Silva, que alega que houve inconstitucionalidade e ilegalidade na decisão da banca.  

“A construção da banca não é unânime e não reconhecer o André. Esse detalhe está explícito no relatório e esse relatório não vem às mãos dele”, afirma a advogada. “Ele tem várias características, desde o cabelo, até a sobrancelha grossa”. 

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal, para uniformizar os aspectos a serem avaliados para vagas por cotas raciais, a Corte definiu que o que deve ser levado em consideração pela banca é: 

  • Textura do cabelo (crespo ou enrolado);
  • Espessura do nariz;
  • Cor da pele (parda ou preta);
  • Lábios grossos e amarronzados.

Todos requisitos sustentados pelo estudante paulista.

Na última segunda-feira 18, a advogada entrou com recurso na universidade com pedido de anulação da decisão e uma audiência de conciliação, na Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP, junto a pró-reitora Ana Lúcia Duarte Lanna e ao professor Felipe de Souza Tarábola, responsáveis pela banca de heteroidentificação. 

Em resposta à defesa, a Universidade reforçou que “não há previsão para nova interposição de recurso” para rever a vaga do candidato e que não poderia conceder acesso ao relatório sem uma procuração judicial. Sem uma nova posição da universidade, o caso deve ir à Justiça. 

No recurso, a advogada sustenta que faltam “o esgotamento de todas as possibilidades de recurso”, que infringiria, por sua vez, o artigo 5º da Constituição Federal, e foi negado ao estudante um direito a um recurso técnico. 

Silva cita também o despreparo da banca, que levou a Justiça a conceder liminar e obrigar a Universidade a matricular outros alunos que não tinham sido reconhecidos como pardos pela banca examinadora.

Diferente de alguns casos analisados pelos Tribunais, em que os estudantes foram submetidos a avaliação apenas de forma virtual, pois foram aprovados em outros vestibulares — Enem e Provão Paulista — André teve a entrevista presencial, o que teoricamente evitaria distorções.

Na ocasião dos outros candidatos — Caíque Passos, aprovado em engenharia, e Glauco Dalalio, aprovado em Direito —, os juízes concederam a liminar, majoritariamente levando em consideração a certidão de nascimento do pai do estudante que foi registrado como alguém de cor parda. 

O que também se verifica no caso do pai de André. A defesa espera que os casos possam servir como base para a instituição reverter a negativa da autodeclaração do estudante.

CartaCapital entrou em contato com a Universidade, que alegou que para a negativa definitiva concedida para André, “o caso do candidato é analisado por quatro grupos distintos”, cada um formados por “cinco professores da Universidade” e que o Conselho é a última instância sobre todos os casos.

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