Editorial

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Meu caro Lula

Carta ao velho amigo

Na cozinha da casa plantada no topo do morro atrás da fábrica da Volkswagen, Lula acaba de voltar da prisão no Dops. A imagem caravaggesca, com a proteção da Virgem do calendário, é de autoria de Hélio Campos Mello - Imagem: Hélio Campos Mello
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Tenho por você o afeto de uma sólida amizade de 45 anos e, como já se deu em inúmeras ocasiões, ­CartaCapital o apoia em tudo e por tudo no embate eleitoral contra o energúmeno demente. Há uma prioridade absoluta em jogo: livrar o Brasil do monstro. Você há de lembrar que sempre repeti, por vezes, na presença de outros convidados ao seu escritório no Instituto Lula, que, para resolver o maior problema brasileiro, o desequilíbrio social gigantesco, seria necessário verter sangue na calçada. Ou seja, deflagrar o confronto com os ricos do País.

Nessas ocasiões, você respondia já ter ouvido a mesma frase de outro amigo, o qual na verdade pretendia uma enxurrada sangrenta a chegar bem acima dos calcanhares. A franqueza, no meu entendimento, é própria de uma amizade como a nossa, até mesmo indispensável. O problema, até hoje sem solução, da injusta distribuição de renda é entrave decisivo para uma democracia autêntica. Simplesmente a impede, embora tantos pronunciem a palavra sem lhe conhecer o significado. Liquidar o fanático do Apocalipse que pretende nos governar novamente é obra de pura misericórdia, a bem do País e do seu povo.

Cumprida esta tarefa, repito que só o confronto resolve. Por que optar pelo caminho da conciliação com as elites? Aliás, que elites são estas? Como diz meu companheiro Luiz Gonzaga Belluzzo, no Brasil não existe elite, e sim ricos, desmesuradamente ricos, enquanto o resto é uma multidão infinita de pobres reféns da miséria. Pergunto novamente: por que conciliar? Com quem? Com os donos de fazendas do tamanho de Estados europeus, de casarões instalados nos bairros ridiculamente definidos como nobres, ou de apartamentos de um andar inteiro, com garagens para dez carros? Seriam estes, que raramente leram um livro, a nata da sociedade?

E, de resto, será que esses donos de casas grandes e sobrados senhoriais estão dispostos a conciliar? São incapazes de renunciar a coisa alguma, muito pelo contrário, empenham-se freneticamente para alargar as suas fortunas. Nada disso estou a inventar, exponho apenas a sacrossanta verdade factual, como diria ­Hannah Arendt, pensadora de rara sabedoria. Já vingou no País o adágio velhaco: deixar como está para ver como fica. Recordo que as greves do fim dos anos 70, comandadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, foram sinal muito forte erguido contra a ditadura. Militar e também civil, com a adesão compacta dos patrões e da mídia no apelo aos quartéis a favor do golpe de 1964.

A capa é a primeira dedicada a Lula, em uma edição de fevereiro de 1978. À direita, o abraço registrado por Ricardo Stuckert, infatigável retratista do ex-presidente à beira do retorno – Imagem: Ricardo Stuckert

Na Vila Euclides, em São Bernardo, você arengava para uma plateia de trabalhadores, incitando-os a uma resistência que brucutus e helicópteros, em voos rasantes, procuravam em vão intimidar. Lembro-me que ao seu palanque levei meu amigo fraterno Raymundo­ ­Faoro, e com ele o visitei no Dops, onde você ficou preso, enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Faoro lhe disse: “Se precisar de um advogado, estou à disposição”. Você atalhou: “Não se incomode, basta o Greenhalgh”. De imediato apoiei a proposta do Partido dos Trabalhadores e compareci a várias reuniões destinadas a lançar a nova agremiação.

Neste período da nossa amizade, agreguei no meu carinho quem esteve muito perto de você, como a infatigável secretária ­factótum Cláudia, o Capitão Moraes, que o levou por mil caminhos, o inseparável Ricardo Stuckert, seu retratista talentoso, e o excelente parceiro Paulo Okamoto, a controlar as despesas do Instituto, além de consumidor feliz de ossobuco à milanesa, sem esquecer o Marcola e o Capistrano, a cuidarem da sua agenda.

Permito-me discordar da ideia recentemente manifestada de que, se eleito, você não vai concorrer à reeleição, ao alegar os 80 anos que terá completado. Lembre-se de um político de quem você gostou bastante e que visitou em Roma, para desculpar-se pelo engano cometido ao oferecer asilo a Cesare Battisti, o criminoso aqui defendido pelo então senador ­Eduardo ­Suplicy, uma escritora francesa de romances policiais, e pelo professor Dalmo Dallari, regiamente instalado em Paris. Sem contar o então ministro da Justiça Tarso Genro, a quem em vão tentei convencer que, de fato, se tratava de um fora da lei contumaz.

Aludo a Giorgio Napolitano, presidente da República italiana. Com apoio do Parlamento, transcendeu a letra constitucional e reelegeu-se. Lá também havia outra prioridade absoluta: liquidar com ­Berlusconi, e contar com a aprovação do chefe do Estado representaria uma intervenção decisiva. Napolitano tinha 90 anos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

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