Editorial
Brasil mitológico
A democracia está na boca de todos, embora não possa vingar no país mais desigual do mundo


Todos falam em democracia neste país que nunca a conheceu e, sobretudo, a praticou. Em Atenas, no fim do século IV a.C., o líder Péricles tudo sabia dela e que sua eterna definição é o regime do povo para o povo e pelo povo. Dos jornalistas esportivos, alguns dotados da certeza de serem os melhores do mundo, as autoridades entre as quais destaco Arthur Lira, presidente da Câmara, figura magnífica para interpretar o filme de Kurosawa, Homem Mau Dorme Bem, sem falar de Luiz Fux, aquele que faria a felicidade do sioux em busca de escalpos, chamado a ministrar a Justiça, mas, impávido, caminha no sentido oposto. Mais um detalhe relacionado à figura: comoventes os rapapés que dedicou a Bolsonaro.
Absolvido Lula de todas as acusações apresentadas pela torpe figura de Sergio Moro, pelo próprio STF, Fux diz nestes dias: “Foi inocentado, mas corrupção houve”. De resto, como seria possível a democracia no país mais desigual do mundo, onde casa-grande e senzala incumbem-se de manter intacta a sua medievalidade. Acabrunhadora a história do poder que as Forças Armadas exercem com absoluta tranquilidade na história nativa, desde o golpe destinado a derrubar a monarquia para impor a república, da qual os primeiros presidentes foram Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, ambos generais.
Ele é bom na prática da injustiça – Imagem: Nelson Jr./STF
Sempre foi poderosa a presença de um ministro da Defesa devidamente fardado, a não ser em raros momentos de lucidez, por exemplo, de Lula, quando em lugar do general foi chamado um civil perfeitamente habilitado a ocupar o posto. E aceitam-se, no país sem democracia, sem iguais no globo, alguns mitos, até agora intransponíveis, entre os quais, o Duque de Caxias, autor do genocídio do povo paraguaio em eras inesquecíveis, embora priscas.
Com Bolsonaro chegamos ao ponto alto deste recurso ao poder militar, buscado, inclusive, para manter-se na Presidência a todo custo e enquanto for possível. Recebo da excelente editora da seção Plural o seguinte recado: “A nuvem negra que encerrava o processo se espalha e responsabiliza o poder e o País no documentário Amigo Secreto, de Maria Augusta Ramos, sobre o impeachment de Dilma Rousseff. O novo filme da cineasta, a partir de uma linguagem documental e incisiva, evoca os mecanismos ilegais adotados pela Operação Lava Jato e o engajamento de Sergio Moro na prisão de Lula”. Que democracia é esta? Graças à propaganda midiática, um personagem deplorável sob todos os pontos de vista como Moro se torna herói.
O Estadão, para variar, um dos autores do apelo às Forças Armadas a favor do golpe de 1964, sustenta que “Lula calado é um poeta”. O jornal paulista afirma que, quando o ex-presidente fala a respeito da guerra da Ucrânia, diz o que CartaCapital afirma desde o momento do ataque de Putin. E reitera a igual prepotência e violência do imperialismo soviético e do Tio Sam. Já O Globo define Lula como um “desorientado com a cena global”. Ao que tudo indica, os jornalões empenham-se em defesa da ideia desastrada da via do meio.
Caxias e Moro, heróis de fancaria – Imagem: Vanessa Carvalho/Brazil Photo Press/AFP e Biblioteca do Congresso dos EUA
A polarização neste momento é clara e a possibilidade de que ele vença no primeiro turno as próximas eleições de outubro soa como provável, ou mesmo algo mais, a demonstrar que o povo brasileiro percebeu a demência bolsonarista e não pretende partilhar dela. Falo de um povo que não chegou a ser nação por enquanto, exatamente porque por aqui a democracia não vigorou e não vigora. Ainda assim, a necessidade de nos livrarmos do bolsonarismo é agora prioridade absoluta, ainda que, depois dos golpes praticados em conjunto pelos ditos poderes da República, tenham expulsado da cena uma presidenta legitimamente eleita.
Tudo converge para uma única verdade: o País nunca foi autenticamente democrático, mas para um povo capaz de evoluir ao perceber a sua desgraça já representa um avanço em relação a um passado nem tão remoto. Faltou a doutrinação de quem haveria de lhe abrir os olhos e hoje, conforme o IBGE, 30% da população morre de fome e cerca do dobro teme sofrer a mesma sorte. Nunca tantos nativos dormiram nas calçadas, nunca tantos temeram o pior, nunca tantos já o vivem. Enquanto isso, Bolsonaro vai a Orlando e lá celebra o aniversário da Disney, evento retumbante que o induz a promover uma motociata para deslumbrar Tio Sam. E, naturalmente, o ex-presidente Trump, ainda cultuado, insisto, pelo nosso presidente, a maioria dos brasileiros o elegeu.
Prossigo na pergunta: seria esta a democracia? Cabe apenas perguntar a Bolsonaro se prefere Mickey Mouse ou o tio do Pato Donald, o Patinhas, que costuma mergulhar em uma piscina cheia de dinheiro até a borda. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Brasil mitológico”
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