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O teatro da Justiça

A narrativa precisa e eloquente de ‘Amigo Secreto’ sintetiza a Vaza Jato e nos faz ver o essencial

Imagens a quente. A diretora Maria Augusta Ramos escancara as arbitrariedades cometidas pelos procuradores da Lava Jato e pelo ex-juiz Sergio Moro - Imagem: Ana Paula Amorim e Vitrine Filmes
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A nuvem negra que encerrava O Processo (2018) parece, em Amigo Secreto, ter se espalhado e coberto o poder e o País. O novo documentário de Maria Augusta Ramos, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 16, prolonga e complementa o registro deste momento turvo da história brasileira.

Se, em O Processo, a cineasta filmou os seis meses da crise política que desaguou no impeachment de Dilma Rousseff, em Amigo Secreto ela procura sintetizar, a partir de recursos da linguagem documental, as arbitrariedades e as violações praticadas pelos procuradores da Lava Jato e pelo ex-juiz Sergio Moro. O primeiro era um filme retrospectivo e, portanto, mais frio. Este foi feito no calor da hora.

“Em geral, faço filmes que me incomodam, me inspiram e me dão medo também. E o que tem acontecido à democracia, com as arbitrariedades da Lava Jato, me toca profundamente”, diz a diretora, em entrevista a CartaCapital. “Ver o ­País no estado em que a gente vê hoje, e se dar conta do nível de ilegalidade da Lava Jato é algo que tem de ser documentado.”

Maria Augusta adota, como fio narrativo, o trabalho de investigação jornalística que tomou por base as mensagens vazadas em um grupo nomeado Amigo Secreto. As imagens acompanham o trabalho de investigação conduzido pelos jornalistas Leandro Demori, então editor-executivo do Intercept Brasil, e Carla Jimenez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, do El País Brasil, alguns dos veículos a revelar o conteúdo das mensagens.

“A gente fez o filme para a memória. Para ele ser visto daqui a 10, 15 anos”

A presença de repórteres como mediadores nas entrevistas com juristas, advogados e acusados acentua a eloquência da leitura de Maria Augusta. O filme expõe as fragilidades de parte da imprensa em sua relação, sem questionamentos, com representantes do Ministério Público, cujos interesses políticos ficaram mascarados pela agenda do combate à corrupção.

A estratégia narrativa permite a ­Amigo Secreto depurar o jornalismo, expondo suas falhas, seu papel danoso na Lava Jato, movido pela crença apressada em versões, sem, com isso, desconsiderar o papel crucial da imprensa. “Evito também desqualificar a Justiça como um todo”, apressa-se em ponderar a diretora, quando o tema surge na entrevista.

“Muito do que se fala no filme nós já sabemos, porque ele se baseia em reportagens”, pondera. “Mas procuramos fazer uma releitura da Vaza Jato. A gente fez o filme para a memória, para ele ser visto daqui a 10, 15 anos.” Isso não significa que Amigo Secreto não esquente ainda mais o caldeirão em que ferve a política no Brasil.

O depoimento dado por ­Alexandrino Alencar, ex-executivo da Odebrecht, sobre as delações premiadas da Lava Jato já saiu do filme para o noticiário. Nele, Alencar fala pela primeira vez, em público, sobre as pressões sofridas para que, em seu acordo de colaboração, comprometesse o ex-presidente Lula. “Ele foi o único a topar dar entrevista. Procuramos todos os envolvidos, mas Moro e outros procuradores não toparam”, relata a diretora. “O depoimento do Alexandrino era essencial para se compreender a Lava Jato e as violações.”

Tramas judiciais. O novo filme guarda uma relação de continuidade com O Processo – Imagem: Vitrine Filmes/Canal Brasil

As entrevistas, ausentes em outros documentários da diretora, surgem em Amigo Secreto como um elemento central. Maria Augusta assume que, desta vez, fez um filme menos austero ou, em suas palavras, menos “bressoniano” – sinônimo, no cinema, de minimalismo e distanciamento.

“Tentei um distanciamento pelo trabalho de câmera, que é sempre frontal, pela escolha de contar essa história por meio de pessoas reais e pela montagem”, detalha, referindo-se à colaboração criativa de longa data com a montadora ­Karen Akerman. “Mas é um filme feito sob o calor da emoção e era impossível a gente ver o que estava acontecendo e não ser tocado por aquilo, mantendo-se na austeridade do roteiro, da estrutura. Existe um comprometimento com a verdade, com a ética, mas é um filme subjetivo. Cada corte, cada fala é uma escolha.”

Nada disso, no entanto, aparta Amigo Secreto de uma das características mais eloquentes do trabalho da cineasta: o autocontrole. A filmagem em meio ao desenrolar dos acontecimentos não a impede de imprimir seu temperamento frio no material. Manter-se fiel ao encadeamento factual e saber escutar o tempo narrativo são qualidades que, aqui, fazem toda a diferença.

Desde a campanha presidencial e durante seu governo, Jair Bolsonaro implantou um método de bombardeamento diário de factoides, embaralhando o foco dos outros poderes e da população. A estratégia, bastante eficaz, induziu o País a só reagir, em vez de agregar forças para agir.

Amigo Secreto não cede a este estímulo de bombardeio. O filme sintetiza os momentos cruciais da transformação bolsonarista e, no lugar da fragmentação alucinatória em que o País está mergulhado desde 2019, oferece uma continuidade, uma progressão. A narrativa elimina os ruídos e nos força a ouvir o essencial.

Nascida em Brasília, em 1964, Maria Augusta formou-se em Música na Universidade de Brasília (UnB) e deu seguimento aos estudos em musicologia e eletroacústica na França e na Inglaterra. Em 1990, mudou-se para a Holanda, onde vive até hoje, e lá começou a estudar cinema.

Amigo Secreto ainda não foi adquirido pelo streaming. “Só depois das eleições”

Desde o primeiro longa-metragem, Brasília, Um Dia em Fevereiro (1996) chamou atenção pelo domínio do método e da linguagem. Com Justiça (2004), que mostra a rotina desumanizadora de juízes, advogados e delinquentes das varas criminais brasileiras, começou a ganhar projeção no Brasil e no exterior. Na sequên­cia, viria Juízo (2007), passado em um Tribunal de Infância e Juventude do Rio de Janeiro, onde as vidas são, desde cedo, moídas por um sistema sem saída.

Esses dois projetos, embora pareçam distintos dos dois filmes mais recentes, já traziam a semente de cada um deles. “Minha obra, desde Justiça, tem focado no sistema de Justiça”, diz. “Me interessa muito relatar as relações humanas, sociais e de poder através do que eu chamo de teatro da Justiça – as audiências, as falas jurídicas. Não tinha como não falar da Lava Jato.”

Amigo Secreto, assim como O Processo, não teve nenhum dinheiro público. Coproduzido pela Vitrine Filmes, foi financiado pelo Grupo Prerrogativas, pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree), pelo canal alemão ZDF, pelo canal franco-alemão ARTE e pelo fundo holandês de apoio ao cinema. “Foi uma luta, mas não poderíamos pedir recursos públicos no Brasil porque é um filme que lida profundamente com a questão política”, afirma.

Documentarista experiente e artista consciente do papel da linguagem, Maria Augusta tem clareza não apenas da relação de continuidade entre os dois filmes como do significado do lançamento de Amigo Secreto a cinco meses das eleições presidenciais. “Temos eleições que vão definir os rumos do País, estamos em um momento perigoso de ataque à democracia e o tema do filme tem de ser tratado, tem de ser visto”, diz. “As pessoas que vão votar devem conhecer os reais fatos por trás da narrativa que a Lava Jato criou. Não consigo fazer filmes com final feliz, mas o nosso final feliz pode ser o resultado das eleições.”

Embora, atualmente, quase todos os longas-metragens cheguem às salas de cinema tendo já definido o seu destino no streaming, Amigo Secreto, segundo Maria Augusta, provavelmente terá de aguardar um pouco até chegar a essa outra janela. “A gente só vai ter uma posição clara sobre isso depois das eleições, se é que vocês me entendem”, diz, com sua fala sempre pausada, e a voz em tom baixo. “Há interesse da parte das plataformas, mas nenhuma decisão será tomada antes das eleições.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O teatro da Justiça”

 

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