Editorial
A Corte exibicionista
Somente no Brasil as sessões do STF são apresentadas diariamente pela televisão. Em países democráticos do velho mundo, atuam escondidas das câmeras e dos olhos da imprensa


Dizia Descartes: “Penso, logo existo”. Pensar basta? O sonho insano de quem perdeu a Razão pode indicar que o indivíduo está vivo, mas nem por isso vai dispensar cuidados ou mesmo ser internado no abrigo do doutor Basaglia, inventor de caridosos tratamentos para combater a sua doença. Parece a decisão de um louco, de um demente em estado puro, encaminhar um país inteiro para uma crise econômica fatal. Seria este o Brasil que acata as decisões de um energúmeno demente, transformadas em leis intocáveis?
CartaCapital acredita que leis possam ser boas ou más, iníquas ou benfazejas. Esta a estabelecer a independência do Banco Central, responsável pela elevação dos juros a 13,5% por decisão do seu atual titular, a mando de prévia determinação demencial, como lhe compete, de Jair Bolsonaro. Peço vênia aos leitores para que permitam uma incursão ficcional que passo a executar.
Um marciano formado em jornalismo pela Universidade de Cambridge e Ph.D. pela Universidade de Florença assume a direção do jornal. Logo propõe e a proposta soa aos ouvidos da redação como uma ordem: “Quem vela pelo cumprimento da Constituição é o STF”. Lá do fundo um jovem repórter objeta: “O País está sofrendo uma crise provocada pelos maiores juros do mundo”. Retruca o diretor: “Somos um país democrático e ao STF cabe decidir até onde deve ir a obediência aos ditames da Carta Magna”.
“A gente bem sabe o quanto é leniente a nossa Suprema Corte, acostumada a consagrar qualquer deslize e quanto mais a traição à letra constitucional.” “Que democracia é esta no segundo país mais desigual do mundo?”, observa gravemente o editor da seção de Política, e o marciano finge uma súbita surdez. Logo acrescenta: “Mesmo assim temos de definir a nossa posição em relação aos juros escorchantes, a crise já começou”. O editor de Economia está particularmente excitado: “O País está à beira da falência, mas a solução existe. Basta revogar a lei que garantiu a independência do Banco Central, decidida pelo presidente Jair Bolsonaro”.
O jovem repórter, lá do fundo, permite-se interferir: “Mas não concordamos em relação à demência do energúmeno? Além do mais, trata-se de um genocida”. “Lei é lei”, afirma categoricamente o editor de Política. “Não foi o que disse Stafford Cripps, ministro do Labor Party, depois da vitória contra os conservadores de Churchill.” O marciano quase murmura ao registrar o vagar, a obsessiva lentidão com que decisões são tomadas no País, embora tudo seja submetido a caudalosas investigações.
Turista nos Estados Unidos, Bolsonaro pontifica – Imagem: Chandak Khanna/AFP
Só falta constar que as leis no Brasil se fazem para justificar golpes de Estado, como aquele praticado contra Dilma Rousseff. Ou a prisão de Lula, que precipitou a eleição de Bolsonaro, enquanto Sergio Moro e Deltan Dallagnol continuam em liberdade. Ah!, sim, foram eleitos por uma dessas leis destinadas a salvar os vilões no país dos absurdos. A tal ponto que o ex-capitão está à vontade em companhia de Mickey Mouse para anunciar seu retorno ao Brasil no decorrer deste mês de março, para assumir a liderança da oposição.
Permito-me sair do andamento ficcional para acentuar o absurdo da situação imposta pela traição à Carta de 1988, ocorrida ao cabo dos trabalhos da Constituinte de meio período presidida pelo doutor Ulysses Guimarães. CartaCapital não acredita que as leis devam ser respeitadas apenas por serem leis, mas temos razões de sobra para perceber os equívocos sem aprová-los.
A demência bolsonarista é responsável por uma lei de efeitos mortais para o País precipitado em uma situação intocada e intocável. A quantidade de crimes cometidos pelo ex-capitão passa largamente da conta. Autor de uma tentativa de golpe de Estado, genocida do povo Yanomâmi, incentivador do garimpo ilegal e do desmatamento na Amazônia, para abrir caminho a criadores de gado e plantadores de soja na direção da transformação da região em um novo Saara. Foi incapaz de executar políticas de combate a uma pandemia que matou milhares, ao sugerir combater a doença à base de cloroquina, sabidamente uma droga inócua para o caso.
Seus discursos na ONU ofereceram um espetáculo cômico a uma plateia altamente qualificada. Não há motivo plausível para aceitar a presença desta figura desprezível e, além de tudo, conforme foi provado, corrupta até a medula. O que o Brasil espera para livrar-se da herança desta torpe personagem e das suas estripulias? Será necessário chamar o ministro Alexandre de Moraes? •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A Corte exibicionista”
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