Editorial

assine e leia

A Corte exibicionista

Somente no Brasil as sessões do STF são apresentadas diariamente pela televisão. Em países democráticos do velho mundo, atuam escondidas das câmeras e dos olhos da imprensa

A Corte exibicionista
A Corte exibicionista
Imagem: Nelson Jr./STF
Apoie Siga-nos no

Dizia Descartes: “Penso, logo existo”. Pensar basta? O sonho insano de quem perdeu a Razão pode indicar que o indivíduo está vivo, mas nem por isso vai dispensar cuidados ou mesmo ser internado no abrigo do doutor ­Basaglia, inventor de caridosos tratamentos para combater a sua doença. Parece a decisão de um louco, de um demente em estado puro, encaminhar um país inteiro para uma crise econômica fatal. Seria este o Brasil que acata as decisões de um energúmeno demente, transformadas em leis intocáveis?

CartaCapital acredita que leis possam ser boas ou más, iníquas ou benfazejas. Esta a estabelecer a independência do Banco Central, responsável pela elevação dos juros a 13,5% por decisão do seu atual titular, a mando de prévia determinação demencial, como lhe compete, de Jair Bolsonaro. Peço vênia aos leitores para que permitam uma incursão ficcional que passo a executar.

Um marciano formado em jornalismo pela Universidade de Cambridge e Ph.D. pela Universidade de Florença assume a direção do jornal. Logo propõe e a proposta soa aos ouvidos da redação como uma ordem: “Quem vela pelo cumprimento da Constituição é o STF”. Lá do fundo um jovem repórter objeta: “O País está sofrendo uma crise provocada pelos maiores juros do mundo”. Retruca o diretor: “Somos um país democrático e ao STF cabe decidir até onde deve ir a obediência aos ditames da Carta Magna”.

“A gente bem sabe o quanto é leniente a nossa Suprema Corte, acostumada a consagrar qualquer deslize e quanto mais a traição à letra constitucional.” “Que democracia é esta no segundo país mais desigual do mundo?”, observa gravemente o editor da seção de Política, e o marciano finge uma súbita surdez. Logo acrescenta: “Mesmo assim temos de definir a nossa posição em relação aos juros escorchantes, a crise já começou”. O editor de Economia está particularmente excitado: “O País está à beira da falência, mas a solução existe. Basta revogar a lei que garantiu a independência do Banco Central, decidida pelo presidente Jair Bolsonaro”.

O jovem repórter, lá do fundo, permite-se interferir: “Mas não concordamos em relação à demência do energúmeno? Além do mais, trata-se de um genocida”. “Lei é lei”, afirma categoricamente o editor de Política. “Não foi o que disse Stafford Cripps, ministro do Labor Party, depois da vitória contra os conservadores de Churchill.” O ­marciano quase murmura ao registrar o vagar, a obsessiva lentidão com que decisões são tomadas no País, embora tudo seja submetido a caudalosas investigações.

Turista nos Estados Unidos, Bolsonaro pontifica – Imagem: Chandak Khanna/AFP

Só falta constar que as leis no Brasil se fazem para justificar golpes de Estado, como aquele praticado contra Dilma Rousseff. Ou a prisão de Lula, que precipitou a eleição de Bolsonaro, enquanto Sergio Moro e Deltan Dallagnol continuam em liberdade. Ah!, sim, foram eleitos por uma dessas leis destinadas a salvar os vilões no país dos absurdos. A tal ponto que o ex-capitão está à vontade em companhia de Mickey Mouse para anunciar seu retorno ao Brasil no decorrer deste mês de março, para assumir a liderança da oposição.

Permito-me sair do andamento ficcional para acentuar o absurdo da situação imposta pela traição à Carta de 1988, ocorrida ao cabo dos trabalhos da Constituinte de meio período presidida pelo doutor Ulysses Guimarães. ­CartaCapital não acredita que as leis devam ser respeitadas apenas por serem leis, mas temos razões de sobra para perceber os equívocos sem aprová-los.

A demência bolsonarista é responsável por uma lei de efeitos mortais para o País precipitado em uma situação intocada e intocável. A quantidade de crimes cometidos pelo ex-capitão passa largamente da conta. Autor de uma tentativa de golpe de Estado, genocida do povo Yanomâmi, incentivador do garimpo ilegal e do desmatamento na Amazônia, para abrir caminho a criadores de gado e plantadores de soja na direção da transformação da região em um novo Saara. Foi incapaz de executar políticas de combate a uma pandemia que matou milhares, ao sugerir combater a doença à base de cloroquina, sabidamente uma droga inócua para o caso.

Seus discursos na ONU ofereceram um espetáculo cômico a uma plateia altamente qualificada. Não há motivo plausível para aceitar a presença desta figura desprezível e, além de tudo, conforme foi provado, corrupta até a medula. O que o Brasil espera para livrar-se da herança desta torpe personagem e das suas estripulias? Será necessário chamar o ministro Alexandre de Moraes? •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A Corte exibicionista”

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s