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A miragem da deflação

A manipulação do índice de inflação em julho não surte o resultado esperado pelo governo

Altos e baixos. O preço do leite aumentou cerca de 25% e pesa no orçamento das famílias. Os combustíveis ficaram mais baratos, graças às medidas eleitoreiras - Imagem: Edilson Rodrigues/Ag.Senado e Renato Luiz Ferreira
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E a maior manipulação eleitoral de que se tem notícia, tanto da inflação quanto da renda dos mais pobres, em simultâneo e em curto espaço de tempo. A mobilização de recursos pelo governo chega a 340 bilhões de reais, segundo algumas aproximações, entre a renúncia de impostos sobre combustíveis e a ampla distribuição de dinheiro vivo até dezembro. A diminuição do ICMS sobre a gasolina e o diesel resultou, no primeiro momento, em um declínio discreto do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, principal indicador inflacionário brasileiro, de 0,68% em julho. O efeito político esperado pelo governo, da combinação entre o barateamento da gasolina e do diesel e o aumento do dinheiro no bolso dos mais pobres por meio de auxílios diversos deveria ser uma redução da distância entre Bolsonaro e Lula, mas não foi isso que aconteceu. É o que mostra a pesquisa eleitoral do Ipec, realizada uma semana após o início do pagamento do Auxílio Brasil reajustado de 400 para 600 reais para 20 milhões de famílias, mais o adicional de 110 reais do Vale Gás para 5,6 milhões de famílias e os mil reais para 900 mil caminhoneiros, antecipações de pagamentos a aposentados, liberação de saques do FGTS e renúncia do ICMS. Na pesquisa, Lula tem 44% das intenções de voto e continua com chances de vencer no primeiro turno. Bolsonaro aparece com 32%.

É muito cedo para a oposição cantar vitória, pois falta um mês e meio para as eleições, o nível de atividade e emprego aumentou e o candidato à reeleição ainda não colocou todas as cartas na mesa, mas há ao menos duas explicações para o truque econômico bolsonarista não ter dado certo, ao menos por enquanto. A primeira delas é a ilusão de ótica inerente ao IPCA, índice que sempre mede variações de preços com efeitos completamente diferentes sobre os mais pobres e os mais ricos. De acordo com a FGV, a diferença entre a inflação dos pobres e a dos ricos em julho foi a maior desde 2020. A segunda é que a heterodoxia de ocasião do governo, gastador às vésperas da disputa presidencial, não consegue apagar de uma só vez o efeito destrutivo de quase quatro anos da política econômica de austeridade centrada no arrocho salarial e na recessão. Segundo levantamento do instituto Quaest, 57% dos brasileiros perceberam que as medidas relacionadas acima foram tomadas apenas para ganhar a eleição, enquanto 38% acreditam se tratar de uma tentativa de melhorar a vida dos cidadãos. É preciso considerar ainda que Bolsonaro atenuou a situação desesperadora dos pobres, agravada em muito pelo seu governo, mas não abriu mão do discurso extremista, e pesquisas indicam uma não aceitação do seu radicalismo sem limites, o que fica evidente na elevada taxa de rejeição.

O arrefecimento da inflação, além de temporário, não atinge o principal, isto é, os preços dos alimentos, que afetam a imensa maioria pobre da população. O IPCA caiu 0,68% em julho, mas alimentação e bebidas subiram 1,30% e compõem o grupo de preços que mais aumentou. Há outros aspectos a destacar. Do mesmo modo que o auxílio emergencial, o auxílio caminhoneiro e outros benefícios, a queda do IPCA provocada pela redução da tributação dos combustíveis tem efeito neste ano, mas deixará de existir em 2023.

A conta dos pacotes eleitoreiros de Bolsonaro: 340 bilhões de reais

O recuo do índice pode ter algum efeito sobre as expectativas, como o governo pretende, mas, além desse resultado, é preciso considerar que “as pessoas não comem índice”, como destaca José Francisco Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator. Isto é, elas prestam mais atenção ao que afeta o seu bolso, ou seja, os gastos no supermercado, na conta de energia e na bomba de gasolina do que aos dados oficiais de inflação. “O efeito sobre a renda real das famílias é inegável, mas a percepção de melhora é mais fraca e diluída”, sintetiza Gonçalves.

Com as medidas tomadas pelo governo até agora, a conta de supermercado, que pesa muito para os mais pobres, não vai mudar, pois, enquanto o preço dos cereais, batata, hortaliças, carnes e pescados caiu, o das aves, ovos, farináceos e panificados subiu, assim como o leite, que foi para o espaço com alta de 25,5%. Para a classe mais bem remunerada, parte do alívio proveniente da baixa dos combustíveis foi anulada pela elevação das passagens aéreas.

Outro aspecto, minimizado por razões óbvias na divulgação do governo, é o fato de parte da queda da inflação dever-se à redução de preços de commodities. É preciso considerar ainda que o governo se vangloria de ter produzido o menor IPCA de julho desde 1980, mas a queda da inflação não é mérito de política econômica, mas de uma intervenção tópica no preço dos combustíveis. A sistemática de dolarização dos preços via Paridade de Preços de Importação continua vigente, com risco de, após dezembro, voltarem a subir, a depender do nível de atividade no País e no resto do mundo.

Melhor ficar em casa. As passagens aéreas subiram, pressionadas pelos custos – Imagem: Rovena Rosa/ABR

O governo chama de deflação a queda da inflação pontual e com data para acabar, em clara distorção, pois o fenômeno requer vários meses para se caracterizar. Em termos internacionais, a queda é irrisória e coloca o País como o quarto, entre as maiores economias, no ranking das maiores inflações. Nada disso impediu, entretanto, o triunfalismo dos governistas. O ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, disse que “a inflação vai continuar em queda e fechar o ano abaixo de 7%, melhor que nos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, e o PIB continuará a crescer e fechará o ano acima de 2%, melhor que vários países ricos”. Um economista da Faria Lima ironizou: “Os alemães e os americanos, com desemprego de 2,8% e 3,5% e renda de, aproximadamente, 50 mil dólares, vão morrer de inveja. Já consigo ver os aeroportos lotados de estrangeiros vindo para o Brasil”.

A ironia chama atenção para o fato de que as comparações não levam em ­conta que a mal chamada deflação só chegou às famílias com renda acima de 9,7 mil ­reais em São Paulo, enquanto o gasto médio com a alimentação consome a totalidade de um salário mínimo das famílias que vivem em favelas. O brasileiro gasta, em média, mais da metade da renda com alimentação.

Os itens alimentação e bebida, que mais afetam os pobres, subiram 1,30% no mês passado

Até economistas considerados “técnicos”, como o ex-diretor do BC Luís Fernando Figueiredo, disseram que a inflação caiu porque o Banco Central a combateu antes, deixando de lado o fator fundamental, a intervenção governamental nos preços dos combustíveis, via PEC ­Kamikaze e ação da Petrobras. O tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros entrou na onda. Nos casos de Figueiredo e Mendonça de Barros, a mistificação não é menor do que naquele de Sachsida: todos sabem que a queda da inflação não é obra da política econômica, mas de um intervencionismo pró-reeleição na economia. “A queda no IPCA reduzirá a inflação do ano, mas não a de 2023, sendo inócua para a política monetária”, destaca Gonçalves. Mesmo porque, se tudo voltar a ficar como estava, em janeiro o ICMS sobre combustíveis subirá e a inflação do ano que vem não muda. “Ou seja, haverá 12 meses da mesma inflação. Neste ano, em vez de ser 10%, será 6,5%, mas no ano que vem continuará em 5,5%. É para onde o Banco Central olha. Se a inflação neste ano for 10% ou 6%, para o BC tanto faz. Ele volta a sua atenção para o horizonte da meta, que é lá adiante, não é aqui. Isso reduz a ‘justificativa’, entre aspas, dessas medidas pontuais, que é a eleição mesmo, fazer o que der de truques para baixar a inflação agora”, afirma o economista.

É importante observar também que o núcleo da inflação e a dinâmica dos preços não foram afetados pelos truques do governo. Os núcleos, destaca Gonçalves, resultam de tratamentos estatísticos que retiram do cálculo variações que fogem ao padrão da maioria dos preços. Ou seja, todos os preços que sobem muito e todos aqueles que caem muito são retirados e permanece um núcleo. “Isso é feito porque, quando ocorre uma puxada de um item, ou uma queda de um item, que não é causada pela situação da economia, isso não é inflação. Desta vez, o cálculo do núcleo expurgou todos os preços que foram muito para baixo”, sublinha o economista.

Em outras palavras, diz, itens que caíram muito por conta de uma medida pontual não podem ser incluídos no cálculo da inflação esperada. Se caiu 0,6% agora, vai subir 0,6% em janeiro. Não muda, portanto, a chamada dinâmica inflacionária. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A miragem da deflação”

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