Observatório da Economia Contemporânea

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A crescente fragilidade financeira das famílias de baixa renda 

Reduzir a vulnerabilidade financeira das famílias de baixa renda do nosso país deverá ser um dos principais compromissos do novo governo eleito

A crise é econômica, mas também social. (Foto: iStock) 15 milhões de brasileiros podem voltar à pobreza a partir de janeiro. (Foto: iStock)
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A inclusão financeira das famílias, via acesso a crédito, tem sido uma característica marcante na economia brasileira desde 2005. Tal processo, no entanto, foi assumindo motivações e características bem diferentes com consequências também distintas sobre a vida das famílias. O objetivo desta nota é apresentar uma análise dos indicadores de fragilidade financeira para explicar mais claramente as diferenças entre esses diversos momentos. 

Numa primeira fase, destacou-se o papel do crédito em estimular o consumo das famílias e o crescimento da economia. A expansão do endividamento e do comprometimento da renda das famílias com o serviço de dívidas numa fase ascendente do ciclo econômico implicou um aumento no padrão de vida das famílias. O quadro mais recente é, porém, bastante diferente. Desde a recessão de 2015/16, o contexto é de estagnação econômica, reforçada pela desmobilização de políticas públicas, em especial na área da saúde, e, posteriormente, os efeitos da pandemia, e, ainda, a partir de 2021 inflação e elevação da taxa de juros. 

Nesse segundo momento diferentemente da trajetória do crédito às empresas, o crédito livre direcionado à pessoa física pelas instituições financeiras em relação ao PIB não apresenta queda, tendo se mantido praticamente estável de 2017 a 2018, e assumindo uma trajetória de crescimento a partir do final de 2018, passando de 13,6%, em dezembro de 2018, para 18,2%, em setembro de 2022. No contexto de estagnação econômica, o aumento do crédito expandiu o endividamento e o comprometimento da renda das famílias com o serviço da dívida Agora, porém, ao contrário da primeira década dos anos 2000, num contexto de queda da renda e de piora nos indicadores de fragilidade financeira. 

De acordo com Minsky (1975), fragilidade ou vulnerabilidade financeira é definida como o grau de exposição a possível descasamento dos fluxos financeiros de entradas e saídas de recursos (pagamentos e recebimentos). Tais fluxos estariam fortemente determinados pelos termos em que a unidade se endividou (prazo e custo) e pelos recursos que disponíveis (renda, reservas líquidas, etc), para honrar os pagamentos do principal e dos juros das dívidas contraídas, além das despesas correntes

O endividamento em condições de queda da renda e emprego e precarização do mercado de trabalho fez crescer a fragilidade financeira

Alguns indicadores indicam o grau de vulnerabilidade financeira das famílias. Primeiramente, pela importância nas estruturas de dívida, os créditos de menor qualidade, ou seja,  de maior custo e menor prazo. Quanto maior a participação desses créditos maior serão as obrigações com pagamentos decorrentes de dívidas no curto prazo e maior será o risco de descasamento dos fluxos de pagamentos e recebimentos, e, portanto, maior a fragilidade financeira. 

O aumento da fragilidade financeira também pode ser medido pelo comprometimento da renda disponível com o serviço da dívida. Isto ocorre tanto pelo aumento da participação dos créditos de pior qualidade, e, também, diante da redução da renda disponível e/ou do aumento de sua instabilidade. 

A inadimplência é outro indicador de fragilidade financeira, sendo uma consequência do descasamento de fluxos financeiros num contexto de elevado comprometimento da renda das famílias, que impossibilita às famílias fazerem frente aos pagamentos decorrentes das dívidas.

O elevado e crescente comprometimento da renda disponível das famílias com o serviço da dívida num contexto de queda e instabilidade da renda, além de elevar a inadimplência, tende a ameaçar o nível de sobrevivência das famílias, assim como ocorre a situação de falência no caso das empresas. Essa é uma das consequências mais diretas e preocupantes da elevação do nível de vulnerabilidade financeira e afeta particularmente famílias das faixas de renda mais baixas por comprometerem seu nível mínimo para sobrevivência.

A importância das políticas de renda

O indicador de comprometimento da renda mensal calculado pelo Banco Central do Brasil refere-se ao valor mensal dos serviços decorrentes das dívidas – juros e amortizações – sobre a massa salarial ampliada disponível (salários + aposentadorias + transferências sociais – impostos).

Esse indicador, considerando os créditos à pessoa física excluído os pagamentos relativos ao crédito habitacional, demonstrou crescimento médio entre 2018 e 2019, tendo porém reduzido em 2020, decorrente dos efeitos das medidas tomadas no auge da pandemia, em especial, o Auxílio Emergencial que reduziu o acesso ao crédito mais caro, como o crédito rotativo, por parte da população mais vulnerável; a ampliação do consignado, cujas taxas de juros são, em geral, mais baixas que as demais modalidades e as prestações são amortecidas num prazo mais longo, e a amplitude da ocorrência de processos de renegociações de dívidas.

No entanto, já ao longo do segundo semestre de 2021, com o fim ou o abrandamento dos efeitos desse conjunto de medidas, esse quadro começa a mudar.

Dado relevante é o  uso do cartão de crédito rotativo pela parcela da população mais vulnerável. Verifica-se variações nas concessões da modalidade de crédito rotativo à medida em que ocorre a liberação, redução e suspensão das transferências de recursos por conta do Auxílio Emergencial. Na primeira fase do Auxílio Emergencial, em que os recursos transferidos foram mais significativos e de maior abrangência – beneficiou 67,9 milhões de pessoas (cinco parcelas de R$600 e R$1.200 – para mulheres chefes de família sem cônjuge) – foi possível verificar queda em termos reais dos valores relativos às concessões mensais de cartão de crédito rotativo, notadamente no período entre abril e julho de 2020. 

O fim do Auxílio Emergencial em outubro de 2021 reduziu a renda disponível para as famílias mais vulneráveis e  ampliou a participação dos créditos de pior qualidade, como os créditos rotativos. Já ao longo do segundo semestre de 2021 observa-se uma trajetória clara de crescimento real acelerado dos valores concedidos na modalidade de cartão de crédito rotativo. 

Esse é, portanto, fator que contribuiu decisivamente para o quadro de elevação do nível geral de comprometimento da renda das famílias com o pagamento das dívidas. O indicador global de comprometimento da renda com dívidas cresce muito rapidamente justo a partir do segundo semestre de 2021, de 22,7% em junho a 25,6% em dezembro e chega a 27%, em agosto de 2022, maior valor da série. 

Para os dados de inadimplência, o cartão de crédito rotativo destaca-se como a modalidade que descreveu trajetória evidente de crescimento desde início de 2021. A inadimplência do cartão de crédito rotativo, já usualmente mais elevada que as demais, cresceu no início da pandemia de 34% em janeiro de 2020 para 39% em agosto de 2020, mas, com os efeitos das medidas tomadas durante a pandemia, caiu para 25% em abril de 2021, e, a partir de então, demonstrou uma tendência de crescimento acelerado, retornando já em abril de 2022, ao patamar de cerca de 39%. Em outubro de 2022, o indicador atinge 44%, maior valor da série, suplantando inclusive os 40% de inadimplência do rotativo verificado em dezembro de 2015, auge do período recessivo. O indicador global de inadimplência demonstra uma resiliência que pode ser em grande medida explicada pelo crédito consignado.

Crédito consignado e a MP de junho de 2022

O crédito consignado é outra modalidade importante no total dos créditos tomados pelas famílias. É uma modalidade que cobra taxas de juros mais baixas e tem por definição, baixa inadimplência. Porém, ainda que possua baixa inadimplência, o crédito consignado não deixa de ter repercussões preocupantes para a fragilidade financeira das famílias no quadro de estagnação econômica. Num contexto de queda da renda familiar e precariedade do emprego podem justamente elevar o comprometimento da renda do servidor ou aposentado até o limite da margem de consignação, reduzindo significativamente os recursos que a família dispõe para sua sobrevivência durante um longo período, dado os prazos extensos desses empréstimos. Além disso, ao fazê-lo, expõe as famílias a recorrerem aos créditos mais caros, e, assim a possível situação de inadimplência no futuro, principalmente considerando um cenário de queda de renda média real. 

Nesse contexto, a concessão de empréstimo consignado aos beneficiários de programas federais de transferência de renda autorizada pelo Governo Federal por meio da Medida Provisória no 1.106, de junho de 2022, pode parecer às famílias o caminho para um alívio inicial. No entanto, essa medida já está acarretando um comprometimento crucial e imediato do valor do seu tão necessário benefício, que se estenderá no tempo e comprometerá certamente e de maneira profunda as condições de vida dessa parcela da população. É provável que essas famílias tenham que muito rapidamente recorrer a linhas de crédito mais caras, e, eventualmente, ao cartão de crédito rotativo. 

Em resumo, as medidas de incentivo ao acesso ao crédito pelas famílias no contexto de crescimento econômico e aumento da renda média real se transformaram, à medida em que a economia perde dinamismo a partir de 2015, em uma ameaça à liberdade econômica, principalmente das famílias de mais baixa renda. Ou seja, o endividamento em condições de queda da renda e emprego e precarização do mercado de trabalho acarretou, em especial para as famílias mais vulneráveis, o aumento da fragilidade financeira. O aumento da participação de créditos de pior qualidade, a elevação da inadimplência e a elevação do comprometimento da renda das famílias com as obrigações decorrentes das dívidas num patamar que chega a comprometer sua subsistência são características marcantes do ciclo de endividamento recente.  

No quadro atual de empobrecimento das famílias e ampliação das desigualdades sociais, reduzir a vulnerabilidade financeira das famílias de baixa renda do nosso país deverá ser um dos principais compromissos do novo governo eleito. 

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