Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

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Que lições deixa a morte da terceira via?

O Brasil e a América Latina têm ainda uma tradição de esquerda que talvez permita sobreviver à onda e gerar alternativas

A terceira via empacou nas urnas e nas pesquisas
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Criador de conceitos essenciais para a compreensão da modernidade tardia, o britânico Anthony Giddens é um dos maiores cientistas sociais vivos. Certos aspectos da sua obra, contudo, envelheceram mal. 

Giddens notabilizou-se nos anos 1990 como ideólogo do Novo Trabalhismo inglês e defensor de uma revisão radical do programa da social-democracia, sob um termo que soa familiar aos brasileiros em 2022: “terceira via”.

Era “terceira via” porque afastava-se do legado trabalhista e pretendia ser alternativa também ao neoliberalismo de Thatcher e Reagan. Na prática, um programa de retirada de direitos e redução do estado, semelhante ao neoliberal – exceto pela proposta pouco crível de compensar o desmonte da seguridade social pelo protagonismo dialógico-reflexivo da “sociedade civil”.

O ocaso da social-democracia, abraçada aos liberais na ‘economia e nos costumes’, deve conter alguma lição

New Labour foi o slogan que elegeu Tony Blair primeiro-ministro em 1997, após longo domínio conservador iniciado no governo Thatcher. Após sucessivas derrotas, o Labour aderiu à voga do mercado eficiente e das reformas “modernizantes”.

Nada de novo sob o Sol. O Partido Socialista francês, como seu congênere espanhol, realizou démarche semelhante ainda nos anos 1980. Na Alemanha, o SPD elegeu Schröder em 1998 com programa “modernizado”, também após longo período de hegemonia conservadora. Um movimento parecido ocorreu nos EUA, com a eleição de Clinton em 1993, após os governos Reagan e Bush.

O Brasil ensaiou sua versão da “terceira via” com a eleição de Fernando Henrique em 1994. O PSDB chegou ao poder no embalo de um bem-sucedido programa de estabilização monetária que, no entanto, cobraria um preço alto adiante. A crise produzida pela manutenção forçada da âncora cambial lançaria o país definitivamente no purgatório da austeridade neoliberal.

O desempenho medíocre do segundo governo FHC permitiu a vitória da oposição de esquerda em 2002, condicionada porém à manutenção do “tripé macroeconômico”. Sem maiores ousadias na condução da economia e tendo inclusive aprovado uma reforma previdenciária de corte fiscalista, o governo do PT implementou com sucesso uma agenda ampliada de políticas sociais, aumento do salário mínimo e incentivos ao investimento e emprego. Um “reformismo fraco”, na expressão de André Singer, que reposicionou o PT no espaço vago da centro-esquerda “social-democrata” e deslocou o PSDB para a direita.

Os programas sociais proporcionaram sucessivas vitórias eleitorais ao PT, mas a sequência foi interrompida pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Para muitos analistas a consequência óbvia – e desejada – seria o retorno do PSDB, que de fato ocorreu, mas com a participação desastrosa no governo postiço de Michel Temer.

A máquina de destruição política posta em movimento para tirar do poder o partido de Lula – chegando ao extremo de prender o ex-presidente em processo escandalosamente irregular – desmantelou o sistema político. Não foi o PSDB o beneficiário, mas o ex-deputado Jair Bolsonaro, político medíocre e fisiológico, militar reformado que por pouco não foi expulso do Exército, eleito após uma campanha baseada em plataformas digitais de relacionamento, com discurso reacionário e “anti-sistema”.

Em meados dos anos 1990, Giddens apontou o que via como contradição central do neoliberalismo: é hostil à tradição – a promoção das forças do mercado e de um individualismo agressivo corrói a solidariedade social – mas apoia-se no discurso conservador – nação, religião, gênero, família – para se viabilizar eleitoralmente.

No Reino Unido, a terceira via não prosperou. Blair obteve duas reconduções, mas seu governo é lembrado principalmente pelo apoio à guerra dos EUA no Iraque e sua alegação fraudulenta sobre armas de destruição em massa naquele país. Elegeu o sucessor, mas pouco depois os conservadores retornaram ao poder – para mais uma temporada que parece longe de se encerrar. 

A “contradição neoliberal” redundou na ascensão da direita neopopulista, vitoriosa no plebiscito pela saída do Reino Unido da União Europeia em 2016.

Naquele mesmo ano, Trump seria eleito presidente dos EUA, vencendo Hillary Clinton, lídima representante do establishment democrata. Derrotado quatro anos depois na corrida pela reeleição, tentou um golpe de estado. Ainda assim, controla o partido Republicano e deve concorrer novamente à Casa Branca, com grandes chances. Como os casos anteriores, o trumpismo se vale massivamente das redes digitais para a disseminação de conteúdos “customizados” e grande capacidade de engajamento.

Na França e na Alemanha a ultra-direita, por enquanto excluída dos governos, tem peso político e densidade eleitoral. A Itália é vanguarda: a esquerda preparou a cama para Berlusconi ainda nos anos 1990, e hoje assistimos à vitória de Giorgia Meloni.

Com este cenário, não deixa de ser curioso que a “terceira via” tenha conhecido uma nada triunfal rentrée por estas bandas – e uma segunda morte, como o inolvidável bebum do conto de Jorge Amado. Causa Mortis: “contradição neoliberal”. Para surpresa somente dos desavisados, muitos “liberais na economia” alinharam-se à ultra-direita.

O ocaso da social-democracia, abraçada aos liberais na “economia e nos costumes”, deve conter alguma lição. É frustrante constatar o fracasso dos democratas americanos, com Sanders, e dos trabalhistas britânicos, com Corbyn, em “voltar às raízes”, como é melancólica a prostração do premiê Scholz diante da guerra na Ucrânia.

O Brasil e a América Latina têm ainda uma tradição de esquerda que talvez permita sobreviver à onda e gerar alternativas. Mas é preciso olhar para a frente e aprender com os erros do passado. Sobretudo, é preciso olhar para o mundo; não há salvação no isolamento nem solução “nacional”. No momento, o essencial é derrotar a ultra-direita. O próximo será um governo de transição, a questão é para onde. O risco é que nos leve para o mesmo lugar.

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