Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

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Os riscos do Big Data e do compartilhamento de dados na saúde

Os riscos envolvidos nestas iniciativas vão além da privacidade e segurança de dados pessoais. Abrem portas também para práticas abusivas de seleção e discriminação de clientela

(Foto: iStock)
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A “transformação digital” na área da saúde é uma tendência que vem sendo amplamente apontada na literatura especializada. Inclui mudanças – tanto no setor assistencial quanto no industrial – e inovação em larga escala de produtos e processos. Um exemplo do impacto desse fenômeno é a popularização da expressão “saúde digital” – e seu correlato em língua inglesa, digital health.

O uso de tecnologias digitais dão mais ganhos de escala e novas aplicações ao subsetor industrial do complexo da saúde. Na assistência à saúde, estão presentes há décadas. O aspecto realmente novo, que justifica que se fale de “transformação digital” da saúde, está relacionado à convergência de tecnologias recentes que possibilitam a varredura e processamento ultrarrápido de imensas quantidades de dados. 

A computação em nuvem e a “economia dos dados” abrem novas oportunidades para empresas, que passam a extrair valor dos Big Data. Os avanços das técnicas de Inteligência Artificial baseadas em redes neurais, com o surgimento da abordagem do “aprendizado profundo” (deep learning) na última década, inauguram seu amplo uso comercial, com reflexos em diversos setores da atividade econômica e nas formas de produzir, consumir e interagir.

Os governos, por seu lado, encontram dificuldades para regular o uso dessas tecnologias e destes grandes conjuntos de dados, boa parte sob controle de um grupo restrito de megacorporações. Cidadãos, incapazes de se opor individualmente à coleta indiscriminada e invasiva de dados pessoais, ficam expostos a novos riscos e ameaças, como perda de privacidade e formas diversas de manipulação.

A criação de aplicações de deep learning requer acesso a grandes quantidades de dados para o “treinamento” de algoritmos. Além de preocupações com privacidade e proteção de dados pessoais, potenciais vieses dos dados e dos algoritmos podem ser prejudiciais a minorias e/ou segmentos marginalizados da população. A Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial, que poderia orientar o desenvolvimento da IA de forma ampla no país, trata de forma rudimentar e superficial esses desafios.

Na saúde, aplicações clínicas levantam o problema adicional dos riscos à segurança dos pacientes e da responsabilidade jurídica por possíveis falhas de sistemas de decisão automatizados. São questões que vêm sendo amplamente debatidas, e já está clara a necessidade de dispositivos regulatórios complexos que orientem o desenvolvimento de aplicações que tragam benefícios reais à saúde da população.

Aplicações clínicas de inteligência artificial ainda são pouco frequentes e encontram-se em estágio experimental, mas a pandemia da Covid-19 acelerou o desenvolvimento de aplicações com análise de big data na área da vigilância em saúde, com várias iniciativas bem sucedidas de observatórios em universidades e instituições de pesquisa, envolvendo também organizações da sociedade e comunitárias. Porém, a atual “corrida aos dados” envolve outras possibilidades de aplicação, que mobiliza interesses do setor de planos e seguros privados de saúde – por exemplo, gestão de carteiras de beneficiários.

O desmonte da gestão da saúde no governo Bolsonaro abriu espaço para o surgimento de propostas regulatórias cujo sentido evidente é promover a concentração de dados no nível central do sistema, facilitando acesso para agentes do mercado da saúde suplementar. A estratégia de Saúde Digital 2020-2028 apresentada pelo Ministério da Saúde viabilizou a criação de uma Rede Nacional de Dados de Saúde. 

Esta “rede”, que na verdade é um centralizador de dados de saúde, “abre as portas para a interoperabilidade entre sistemas de informação de saúde de todos os setores” em nome da “transição e continuidade do cuidado nos setores público e privado” – na prática, o compartilhamento de dados do SUS para o setor privado. Anunciada pelo Ministério da Saúde no início de 2022, a iniciativa “Open Health” inspira-se em práticas do setor financeiro (“open banking”) para sustentar que o compartilhamento de dados aumentaria a concorrência no setor suplementar de saúde. Contudo, não foram apresentadas evidências de que a abertura dos dados pessoais geraria benefícios para o SUS e a população Brasileira.

Os riscos envolvidos nestas iniciativas vão além da privacidade e segurança de dados pessoais. Abrem portas também para práticas abusivas de seleção e discriminação de clientela, por condições de saúde e/ou capacidade de pagamento (“seleção de risco”), passando por cima de normas da ANS e da própria Lei Geral de Proteção de Dados que entrou recentemente em vigor. 

Em um mercado altamente concentrado como o da saúde suplementar, é difícil supor que a concentração de dados e seu compartilhamento com o setor privado facilitará a entrada de novos agentes no mercado e aumentará a concorrência. Em vez de fomentar a competição, podem gerar aumento de taxas de lucro em detrimento dos beneficiários.

Tais propostas são gestadas em gabinetes, com apoio de consultores bem remunerados e parcerias internacionais, sem que os usuários do sistema de saúde – os supostos beneficiários – sejam ouvidos. O Conselho Nacional de Saúde não foi acionado em nenhum momento para avaliar e se manifestar sobre essas proposições; ao contrário, foi o Conselho que tomou a iniciativa de requerer esclarecimentos e informações, a partir dos alertas que surgiram das redes de pesquisadores e ativistas  que trabalham com o tema. É preciso estimular o debate público e aberto sobre essas questões, com maior envolvimento da comunidade científica, das universidades e dos usuários.

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