Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

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O Brasil precisa rediscutir o seu arcabouço fiscal e o papel do governo

Além da necessária inclusão da responsabilidade social no debate

A crise é econômica, mas também social. (Foto: iStock) 15 milhões de brasileiros podem voltar à pobreza a partir de janeiro. (Foto: iStock)
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No dia 15 de dezembro de 2016, a Emenda Constitucional n. 95 (EC95) alterou o regime fiscal brasileiro para somar o “teto de gastos” ao grupo das principais regras fiscais da União. Regras fiscais são restrições duradouras por meio de limites aos agregados orçamentários. Completados cinco anos da instituição do teto, as restrições não parecem ter surtido os efeitos esperados por seus formuladores.

A despeito disso, parece dominar na mídia e nas falas do governo a ideia de que o teto de gastos é fundamental para a economia brasileira e condição sine qua non para sua recuperação. Com isso, tem-se sobre as regras fiscais brasileiras a velha ideia de que “não há alternativa”. Tal perspectiva não é verdadeira e, tendo em vista a atual situação social e econômica, é central o debate sobre o tema.

Apesar do excesso de legislação – atualmente há mais de 10 regras fiscais em vigência no País – a estrutura fiscal no Brasil, no que tange à União, pode ser pensada a partir de três regras que, sobrepondo-se umas às outras, constituem os principais limitantes ao gasto público. A primeira delas é a chamada Regra de Ouro e está na nossa Constituição desde 1988. A segunda é a meta de resultado primário. A terceira, por sua vez, é o famoso teto de gastos, implementado pela EC95. Mas o que essas regras definem e com base em que se fundamentam?

A Regra de Ouro busca impedir que o governo faça operações de crédito em volume maior do que as despesas de capital. Em outras palavras, a ideia é impedir o governo de emitir dívida para pagar despesas correntes. Na prática, o governo poderia fazer dívida para construir hospitais ou escolas, mas estaria impedido de usar o endividamento para pagar médicos ou professores. A meta de resultado primário, por sua vez, determina que, antes do início do exercício financeiro, o governo deve estipular uma meta para o resultado entre as receitas primárias e as despesas primárias. A terceira regra, o teto de gastos, impede o aumento real das despesas primárias da União.

O conjunto dessas regras tem como base interpretações teóricas da economia, vinculadas ao que chamamos de “pensamento ortodoxo”. Neste, de forma geral, a política fiscal seria ineficiente para estimular a economia no longo prazo, sendo seu uso constrangido pelo o que os agentes consideram ser a “sustentabilidade da dívida”. Nesta perspectiva, o pensamento ortodoxo sugere a instituição de regras rígidas para restringir a política fiscal, como fazem as regras fiscais atuais.

Para citar um dos argumentos questionáveis que baseiam essas regras, está o de que existiriam “vigilantes da dívida”. Isto é, de que haveria um limite para o crescimento da dívida dado por um estoque ótimo de títulos que os agentes privados aceitariam carregar. Uns acreditam que esta “insustentabilidade” da dívida poderia se configurar em um calote de fato do governo, outros sugerem que seria o “calote inflacionário”, ou seja, o pagamento da dívida geraria inflação e corroeria todo o poder de compra de seu detentor. No entanto, nunca houve consenso sobre esta tal “sustentabilidade” da dívida. Enquanto os resultados do estudo que testemunhava a favor da existência dos “vigilantes da dívida” foi posto à prova diante acusação de manipulação fraudulenta dos resultados, um estudo recente conduzido na UFRJ sobre os leilões do tesouro brasileiro desde o início do século sugeriu a inexistência de tais agentes no mercado brasileiro.

Outro argumento é o associado à Regra de Ouro, de que o endividamento carregaria um ônus entre as gerações. A divergência teórica aqui se dá na medida em que o pagamento de impostos para pagar a dívida só geraria distribuição de recursos entre membros da mesma geração (pagadores de impostos e detentores da dívida), sem que nenhum ônus seja imposto para esta geração como um todo. No que tange especificamente ao teto de gastos, este está associado à teoria de que a contração do gasto público expandiria o gasto privado.

A teoria ficou conhecida como “contração fiscal expansionista”. Seus teóricos não conseguiram encontrar evidências robustas de sua validade nas principais economias do mundo e caíram em descrédito até mesmo perante o FMI.

Ao mesmo tempo que há questionamentos aos argumentos teóricos que sustentam as regras, elas também possuem problemas técnicos. No caso da meta de resultado primário, há a questão da prociclicidade dos gastos. O problema ocorre pelo fato de as despesas do governo terem que acompanhar os ciclos das receitas para que a meta de resultado seja cumprida. Assim, se a economia está se expandindo e o aquecimento econômico gera receitas tributárias, os gastos possuem espaço para crescer, o que não ocorre em momentos de crise, quando mais se precisa da atuação pública. Além disso, o fato da meta ter que ser apurada bimestralmente gera uma prática perversa de contingenciamento dos gastos.

Desse modo, a questão das regras fiscais não é consensual na teoria econômica. Diante da corrente crise social e econômica e tendo em vista a restrição do orçamento público e a capacidade de atuação estatal, sua revisão torna-se urgente. Vale notar que independente do plano de governo que venha a ganhar nas urnas em 2022, o arcabouço fiscal atual imporá uma agenda de austeridade a ser seguida. Entendemos que não há saída que não passe por rediscutir o arcabouço fiscal do Brasil e o papel do governo, bem como a necessária inclusão da responsabilidade social no debate da responsabilidade fiscal.

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