Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

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As consequências da nova ‘paz’

Enquanto as respostas não chegam, devemos cuidar para que sejam preservados os requisitos elementares de civilização

Joe Biden e Vladimir Putin. Fotos: AFP
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Quando John Maynard Keynes decidiu abandonar as negociações que resultaram no Tratado de Versalhes, das quais participava como membro da delegação britânica, já havia compreendido que estava anunciado um desastre. Em As Consequências Econômicas da Paz, longo panfleto publicado como  livro pouco depois, em 1919, Keynes alertava o público para efeitos de curto prazo dos acordos: ruína econômica, ditadura e guerra.

A História lhe deu razão. As sanções impostas à Alemanha minariam as chances de estabilização geopolítica na Europa gerando ressentimentos insanáveis. Em 1933 Hitler torna-se chanceler, o resto é História. Enquanto grassava o fascismo, líderes do ocidente esclarecido cuidavam dos “negócios”, da manutenção de suas colônias e protetorados e dos respectivos umbigos. Em setembro de 1939 o exército nazista invadiu a Polônia, era a Segunda Guerra.

Keynes arregaçou mangas junto ao Tesouro Britânico para organizar o financiamento do esforço de guerra. Quando esta se aproximava do fim, elaborou um plano para a reconstrução das finanças mundiais, que não foi implementado mas fundamentou parcialmente as proposições do acordo de Bretton Woods.

Finda a guerra, desta vez os vencedores não humilhariam desnecessariamente os vencidos. Os EUA, grande vitorioso do lado ocidental, tendo antes imposto o dólar como padrão do comércio mundial, empenhou-se na reconstrução econômica do Japão e da parte ocidental da Alemanha – dividida como resultado do triunfo militar da URSS no front oriental. O mundo se repartia, então, em dois grandes blocos, em um equilíbrio instável de poder que, por outro lado, ensejou um período de progresso econômico com redução de desigualdade em geral.

Embora o pós-guerra seja caracterizado como um período de afluência e crescimento, foi também extremamente turbulento. A corrida armamentista garantiu uma paz relativa, baseada na dissuasão, entre os blocos concorrentes, mas guerras foram travadas “por procuração” nas colônias em luta por emancipação. Conflitos sangrentos eclodiram na Ásia e na África e inúmeros golpes de estado e desestabilização de governos ocorreram em países do chamado “Terceiro Mundo”. O propósito da criação de uma ordem internacional pacífica e mais equilibrada, como desejava Keynes, fracassou.

O acordo de Bretton Woods desmoronou com a denúncia unilateral do padrão dólar-ouro pelos EUA no início da década de 1970, e foi sepultado pelo choque de juros do FED no final da mesma década. Vivemos sob seus escombros – o “remédio” oferecido foi o neoliberalismo, não uma nova ordem mas a desordem dos mercados.

O muro de Berlim ruiu em 1989, setenta anos após As Consequências Econômicas da Paz, e a URSS se auto dissolveu dois anos depois, plácida e complacente. Porém, o vencedor não trataria os vencidos com a mesma prudência de 1945. Ao contrário, apostou todas as fichas em um reordenamento unipolar. Em vez de reconstrução, o neoliberalismo selvagem resultou em instabilidade política, fragilidade econômica e insegurança social nos países do Leste. A Rússia pós-soviética, ainda uma potência nuclear, foi isolada. A OTAN, criada para se contrapor ao avanço soviético, não cessou de se expandir e incorporou vários países do extinto Pacto de Varsóvia.

A entrada da Ucrânia na OTAN seria o próximo capítulo nesta marcha da insensatez. Na ausência de um estadista com as qualidades intelectuais e morais de Keynes, um Henry Kissinger – absolutamente insuspeito de simpatias anti-imperiais – havia alertado em 2014 para as consequências do desatino. A lição de Versalhes não foi aprendida.

Não há como tergiversar, a invasão russa na Ucrânia é uma grave violação do direito internacional, que só faz reforçar a situação de anomia que perdura há décadas na política global e, pior, faz ressurgir a ameaça da destruição em larga escala – a Rússia possui atualmente o maior arsenal nuclear individual do mundo – com consequências inimagináveis.

Por seu lado, o prontuário criminoso de intervenções dos EUA no exterior é extenso e inclui invasões militares, golpes de estado, sabotagem, espionagem etc., mas também armar e financiar grupos terroristas e jihadistas e neonazistas, desde que favoreçam seus interesses momentâneos. Latino-americanos, em especial, têm o dever moral de lembrar o papel ignominioso dos EUA em inúmeros golpes de estado e o apoio a ditaduras cruéis na Região. Reivindicações de superioridade ética do lado “ocidental” são pura hipocrisia e devem ser rechaçadas.

Fala-se em um “novo mundo multipolar” mas também em “nova Guerra Fria”, enquanto os EUA continuam acalentando o sonho de uma ordem unipolar sob seu comando – e seu alvo estratégico principal não é a Rússia, mas a China. Certamente é um mundo mais inseguro para a maioria dos países e para a imensa maioria da população do planeta, que sofrem as consequências dos jogos de poder e guerra das oligarquias políticas e econômicas mundiais.

Quando houver um distensionamento, o que podemos esperar? As sanções econômicas anunciadas pelo bloco norte-americano contra a Rússia são claramente contraproducentes e vão gerar mais instabilidade. Seria possível um novo equilíbrio, que levasse em consideração os interesses e necessidades da maioria dos países e pessoas, em que os emergentes tivessem voz e os países do Leste Europeu não precisem alinhar-se compulsoriamente à OTAN ou à Rússia? O Brasil teria condições de liderar o bloco dos emergentes, com outros países, nessa briga? Qual o possível papel da China nesse novo arranjo?

Enquanto as respostas não chegam, devemos cuidar para que sejam preservados os requisitos elementares de Civilização que sustentam o direito à informação, a liberdade acadêmica e o jornalismo independente – nada disto está garantido! O nazismo e a Guerra mostraram que Keynes estava certo sobre Versalhes. Iniciado o conflito, porém, isso já não importava. O jogo sem fim de acusações mútuas quanto à responsabilidade moral sobre o desastre não nos poupará de suas consequências – que podem ser a paz dos cemitérios.

 

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