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AGU não adere a pedido de cassação da Jovem Pan e dificulta ainda mais debate sobre sanções à radiodifusão

Requisição do MPF tinha como pano de fundo o alinhamento da emissora à uma campanha de desinformação ao longo de 2022, no período que antecedeu as eleições presidenciais

Foto: Divulgação/Jovem Pan
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Na última semana, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou em relação à Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal em São Paulo (MPF) que pede a cassação da concessão da Jovem Pan. A primeira manifestação da AGU ocorreu no dia 4 de março. Nela o órgão afirma considerar improcedente a Ação Civil Pública movida pelo MPF. Após receber inúmeras críticas por parte de especialistas e organizações da sociedade civil, o órgão produziu nova manifestação no dia 6 de março, desta vez, pedindo para se transformar em polo ativo no processo contra a Jovem Pan. No entanto, o órgão manteve-se signatário apenas dos pedidos de direito de resposta e pagamento de multa, não aderindo à coautora do pedido de cassação da emissora.

Em junho de 2023, o MPF em São Paulo, por meio de sua Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), abriu Ação Civil Pública contra a Jovem Pan em função de uma série de irregularidades cometidas pela emissora ao longo do ano de 2022. Na ação, o MPF propõe que a União tome medidas em relação a tais violações, indicando três sanções a serem cumpridas com base na legislação em vigor: direito de resposta, multa onerosa e cassação da concessão. As duas concessões que são objeto da ação do MPF estão em operação em São Paulo e em Brasília.

Para a produção da Ação Civil Pública, documento que contém 215 páginas, o MPF analisou o conteúdo produzido e transmitido pela Jovem Pan entre 1º de janeiro de 2022 e 8 de janeiro de 2023, especialmente nos programas “Os Pingos nos Is”, “3 em 1”, “Morning Show” e “Linha de Frente”. Da análise de um sem-número de programas veiculados pela emissora ao longo de 2022, o MPF identificou uma série de violações às legislações em curso, em especial ao Art. 53 da Lei nº 4.117/1962, conhecido como Código Brasileiro de Telecomunicações.

De um modo geral, as campanhas de desinformação produzidas pela Jovem Pan questionavam as urnas eletrônicas, induzindo seus ouvintes a uma descrença generalizada tanto em relação ao processo eleitoral quanto em relação às autoridades responsáveis pelas eleições – que segundo apresentadores e comentaristas da emissora, estariam em evidente conluio para manipular o pleito de 2022. O argumento, sem embasamento técnico e cheio de acusações contra membros do Superior Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi repetido inúmeras vezes ao longo de todo ano, demonstrando ser parte da linha editorial da emissora.

Em novembro de 2022, mesmo após relatório do ministro da Defesa atestando a confiabilidade das urnas e do processo eleitoral, a emissora seguiu reverberando informações falsas acerca do processo, contribuindo, portanto, para a não aceitação do resultado das eleições. De acordo com o levantamento produzido pelo MPF, os discursos que questionavam a idoneidade do sistema político brasileiro foram escalonando e tomaram outra dimensão após o resultado das eleições e os comentários passaram a insuflar a população contra o resultado das eleições.

Paralelo a isso, eram usadas interpretações equivocadas da Constituição Federal para justificar uma intervenção militar no país. “Eu tenho que chamar as Forças Armadas. É claro que eu tenho que chamar as Forças Armadas. Por quê? Porque está escrito no texto constitucional. Não é uma opção”, disse Paulo Figueiredo, durante longo discurso em que defende a intervenção militar como legítima naquele momento para “reestabelecer a ordem”. Em inúmeros outros trechos – todos descritos na Ação Civil Pública – apresentadores e comentaristas da emissora convocavam os ouvintes a irem para as ruas em protesto, o que obviamente ajudou a produzir a onda de ocupações em frente aos quartéis naquele mês e ajudou a articular a base de ouvintes para a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023.

Legislação brasileira

A legislação brasileira que trata das punições e sanções sobre as empresas concessionárias de serviços de radiodifusão no país não deixa dúvidas de que o caso da Jovem Pan é passível de cassação. O CBT (Lei nº 4.117/1962), em seu Art. 33, lista uma uma série de ações que constituem abuso no exercício de liberdade da radiodifusão. Dentre estes abusos estão: incitar a desobediência às leis ou decisões judiciárias; fazer propaganda de guerra ou de processos de subversão da ordem política e social; insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas forças armadas ou nas organizações de segurança pública; caluniar, injuriar ou difamar os Poderes Legislativos, Executivo ou Judiciário ou os respectivos membros; veicular notícias falsas, com perigo para ordem pública, econômica e social. Todos estes abusos foram verificados na análise minuciosa produzida pelo MPF.

A mesma Lei identifica, em seu Art. 59, que as penas (ou sanções) a serem imputadas às emissoras devem ser, nesta ordem de proporcionalidade em relação à gravidade do abuso cometido: a) multa; b) suspensão de até trinta (30) dias; c) cassação; e d) detenção. Esta última designada ao responsável pela concessão. A pena de multa pode ser aplicada isolada ou conjuntamente com outras sanções inclusive. Além disso, a mesma Lei indica, em seu Art. 64, em quais casos deve ser imposta a pena de cassação, sendo o primeiro deles, a infringência do Art. 53, anteriormente citado.

A Constituição Federal também traz em seu Art. 221 que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão a alguns princípios, entre eles, a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Ao usar a desinformação sobre as urnas eletrônicas e processo eleitoral como base para toda a argumentação de apresentadores e comentaristas, a Jovem Pan também está descumprindo um preceito fundamental. Além das leis específicas e seus decretos e do texto constitucional, as portarias ministeriais regulamentam os procedimentos de recebimento e apuração das infrações e a aplicação das sanções. A última a versar sobre sanções administrativas é a Portaria 9.018/2023 do Ministério das Comunicações.

O que precisa ficar evidente em relação ao caso da Jovem Pan é que a sanção, seja ela multa onerosa ou cassação, não deve ser objeto de disputas políticas, mas resultado do cumprimento da legislação em vigor. As concessões são públicas, cabendo ao Estado atuar para  que a exploração da radiodifusão se dê em consonância com a lei e com o interesse público. E isso não vale apenas para as concessões na radiodifusão. Todos os setores da economia que ofertam serviços públicos pela lógica da concessão à empresa privada são regulados (água, energia, transporte, etc). E cabe às empresas prestarem contas sobre a qualidade destes serviços.

No caso da radiodifusão, inclusive, não é a primeira vez e provavelmente, não será a última, que uma emissora será cobrada a prestar contas sobre os serviços prestados. Em outros momentos, emissoras comerciais como Record e RedeTV! foram punidas em resultado de ações civis públicas por terem abusado explicitamente de suas liberdades de radiodifusão ao atentarem contra crianças e adolescentes, contra a dignidade das mulheres e contra as religiões de matriz africana.

Algumas vezes, no entanto, tais punições foram desproporcionais ao abuso cometido, como no caso da emissora TV Cidade, afiliada cearense da Record, que em 2014 foi condenada a pagar multa de irrisórios R$ 24 mil por ter exibido em sua programação vídeo de estrupo de uma menina de nove anos. Neste sentido, a indicação pelo MPF de uma multa de R$ 13 milhões à Jovem Pan, valor correspondente a 10% de seu faturamento, confere maior proporcionalidade à sanção em relação ao abuso cometido.

O MPF denuncia que a desinformação afeta o direito de brasileiros de receberem informações adequadas sobre questões de interesse público, sendo passível, portanto, de direito de resposta. Desinformação que ganha proporções relevantes quando levado em conta que o grupo Jovem Pan dispõe de mais de cem afiliadas, que retransmitem o sinal a centenas de municípios em 19 estados, alcançando milhões de ouvintes.

A Jovem Pan “não apenas abusou de sua liberdade de radiodifusão, mas também violou o direito da população à informação correta e qualificada sobre temas de inegável interesse público”, diz trecho da ACP. O direito de resposta é aqui considerado, portanto, como um direito coletivo, à luz de amplo acúmulo nacional e de diferentes convenções internacionais que versam sobre liberdade de expressão e imprensa.

Infelizmente, a falta de um entendimento amplo sobre os limites à liberdade de expressão e sobre as possíveis sanções em caso de abuso no exercício da radiodifusão dificultam a aplicação da sanção mais severa. A pena de cassação de concessões de rádio e TV no Brasil foi imposta apenas duas vezes: sobre a TV Excelsior, em 1970, e sobre a TV TUPI, em 1980, ambas durante a ditadura civil-militar – o que lança ainda mais desconfiança sobre a possibilidade de cassação. Soma-se a isso o fato de que no Brasil, assim como em outros países latino-americanos que passaram por ditaduras nos últimos 50 anos, o Sistema Judiciário é pouco permeável à tese de que a liberdade de expressão não é absoluta e deve ser sempre sopesada em relação a outros direitos fundamentais.

Em tempos de extrema polarização ideológica, fica ainda mais difícil ampliar este entendimento de forma democrática, e ações como esta produzida pelo MPF são acusadas de estabelecer crivo político. Mas a realidade é que se as emissoras estão utilizando a concessão de um bem público que é escasso para cometer crimes reiteradamente, a cassação se torna um dever do ente regulador, que é o Estado. Respeitando o direito de defesa e o devido processo legal, condutas de emissoras que atentem contra a Democracia e os Direitos Humanos devem ser consideradas como infração gravíssima e, portanto, ser objeto de sanções mais severas como a cassação da concessão.

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