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Caso Jovem Pan: a União está contemporizando por quê?

Recuo da AGU em ação contra emissora que viola a legislação brasileira de radiodifusão é, no mínimo, inquietante

Foto: Divulgação/Jovem Pan
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*Por Flávia Lefèvre

Às vésperas das eleições municipais e aturdidas com os resultados das últimas notícias a respeito da redução dos níveis de aprovação do Presidente Lula, as forças progressistas e diversos segmentos da sociedade têm levantado questionamentos sobre a atuação da Secretaria de Comunicação da Presidência da República frente aos ataques que o governo Lula vem sofrendo nas redes sociais, nos canais mantidos pelo bolsonarismo e na mídia hegemônica, com intensa desinformação sobre as políticas públicas e resultados positivos e incontestáveis conquistados de janeiro de 2023 até aqui.

Sem prejuízo de reconhecermos a necessidade de reflexões voltadas para o aperfeiçoamento na atuação da SECOM, dado o grau de domínio que as forças reacionárias têm mostrado quanto ao uso das aplicações da Internet e dos meios de comunicação para mobilização de parte significativa da sociedade, com base em discursos de ódio e desinformação, é importante pensarmos não só na comunicação do Governo com a sociedade, mas também em como reagir institucionalmente contra as iniciativas ilegais. Os efeitos disso têm contaminado as eleições desde 2014, com eventos impactantes que culminaram com o impeachment da presidenta Dilma, a prisão de Lula e, mais recentemente, a intentona do 8 de Janeiro.

Nessa direção, tenho insistido que o Brasil já conta com ferramentas legais para coibir muitos dos ilícitos perpetrados no campo da comunicação. Isso ocorre a despeito da necessidade velha e urgente de regulação da mídia, que alcance também as mídias digitais, e da aprovação de uma lei que estabeleça padrões de transparência e supervisão sobre as práticas de moderação de conteúdos pelas plataformas de aplicações de Internet, que hoje controlam os fluxos de informação num regime de oligopólio transnacional. 

Tanto é assim, que o Tribunal Superior Eleitoral, entre outras atuações durante as eleições de 2022 e decisões judiciais relativas a este último pleito, acaba de editar a Resolução 23.732, de fevereiro de 2024, alterando a Resolução 23.610/2010, que dispõe sobre propaganda eleitoral. O novo texto traz previsões específicas de obrigações e responsabilidades tanto para a radiodifusão quanto para os provedores de aplicações na Internet, com vistas a enfrentar a desinformação, discursos de ódio e práticas que violem a legislação eleitoral.

O caso Jovem Pan

Outro caso também exemplar de atuação de órgãos públicos no enfrentamento à desinformação, com base nos instrumentos legais com os quais já podemos contar, é a Ação Civil Pública ajuizada em junho do ano passado pelo Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) contra a Jovem Pan e a União Federal. A ação resultou na apuração em Inquérito Civil prévio, por meio do qual foram constatadas inúmeras violações à Lei 4.117/1962. Entre elas, o abuso do direito à liberdade de radiodifusão, especialmente quando a Jovem Pan atuou em franca campanha questionando as instituições e higidez do processo eleitoral que elegeu o Presidente Lula, apoiando as teses ilegais sustentadas pelo então Presidente Jair Bolsonaro.

A ação ficou suspensa de junho de 2023 até o último mês de fevereiro, com o objetivo de que as partes encontrassem um caminho consensual para a adequação das práticas da Jovem Pan à lei, o que, para nenhuma surpresa desta que vos fala, não deu certo. Por isso, a ação voltou a ter andamento com a intimação da União para que se posicionasse e indicasse se ficaria como corré ao lado da emissora, ou como coautora ao lado do MPF-SP, bem como sobre os pedidos formulados pelos procuradores da República, entre eles, o cancelamento das concessões da emissora.

O desenrolar do processo a partir de então veio em capítulos palpitantes. A primeira e longa manifestação da União – foram 22 laudas, com data de 4 de março deste ano, representada pela Advocacia-Geral da União (AGU), foi no sentido de que a Jovem Pan estava no pleno exercício de “liberdade de expressão e de imprensa e de sua aplicação no âmbito da radiodifusão”, mantendo-se na posição de corré, pronunciando-se pela negativa do pedido de medidas liminares requeridas pelo MPF-SP e já dando indicativos claros de que atuaria para o julgamento de improcedência da demanda.

Felizmente, no dia 5 de março, foi protocolada nova petição da AGU, informando que estava se retratando do posicionamento anterior e que passaria a atuar ao lado MPF-SP, “na defesa da higidez e confiança do sistema eleitoral e do princípio democrático, deduzindo os pedidos que reputar cabíveis, necessários e proporcionais para promover a efetiva responsabilização da ré ante sua conduta agressiva ao regime democrático brasileiro”. 

Esse pronunciamento gerou grandes expectativas de que a União estaria de acordo com os pedidos formulados pelo MPF-SP, especialmente porque as inúmeras ilegalidades praticadas pela Jovem Pan estão fartamente documentadas. Entretanto, por meio de nova manifestação, a AGU passou ao polo ativo da ação, aderiu a uma série de pedidos como impor-se à concessionária direito de resposta em defesa do sistema de votação brasileiro, imposição de multa no valor de mais de R$ 13 milhões, mas curiosa e inexplicavelmente, deixou de aderir ao pedido de cancelamento da concessão, a despeito de estarem caracterizadas diversas hipóteses legais que trazem como consequência esta penalidade.

O MPF-SP então se manifestou afirmando o seguinte: 

“Com isso, o que se tem, portanto, é que a UNIÃO: i) reconhece a gravidade dos fatos praticados pela JOVEM PAN ; ii) reconhece que esses fatos encontram previsão típica como abuso à liberdade de radiodifusão, nos termos do art. 53 da Lei no 4.117/1962; iii) reconhece que, no caso, o cancelamento das outorgas da emissora ora demandada é uma medida juridicamente possível; e iv) a despeito de tudo isso, alega que uma “ponderação principiológica” levaria ao não cancelamento das outorgas em tela, mas sim a “outras medidas reparatórias e sancionatórias, também postuladas neste feito”. 

E concluiu: 

“Nesse passo, a compreensão exposta pela UNIÃO, para sustentar a suposta desproporcionalidade do cancelamento judicial das outorgas da JOVEM PAN, equivale a uma tese de quem, mesmo após constatar, em um caso concreto, a prática do grave crime tipificado no art. 359-M, do Código Penal (“Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência”), aduz que um juízo de “proporcionalidade principiológica” permitiria impor, a seu autor, uma pena de apenas 01 ano de reclusão, ignorando completamente os parâmetros de dosimetria delineados pelo próprio legislador. 

Em outras palavras, ao contrário do que entende a UNIÃO, constatados atos de abuso à liberdade de radiodifusão tipificados no art. 53 da Lei no 4.117/1962 (que ela reconhece que ocorreram no caso em tela), não há discricionariedade na escolha da sanção a ser aplicada. O cancelamento das outorgas da emissora envolvida, neste plano, é impositivo, sob pena de se fazer tábula rasa dos parâmetros cogentes previstos na lei”

Ou seja, impossível não classificar a atuação da AGU como inquietante e contraditória, causando profunda perplexidade, para dizer o mínimo, especialmente tendo em vista as atribuições que ganhou com a Lei 14.600/2023, que reorganizou a estrutura dos órgãos da Presidência da República e com o Decreto 11.328/2023, estabelecendo uma Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, justamente para o enfrentamento de ataques às instituições democráticas que revertem em cenários de grande instabilidade política, como temos enfrentado nos últimos anos, com contribuição bastante relevante da Jovem Pan.

Vale inclusive destacar que a Jovem Pan reproduz seus programas no canal que mantém no YouTube com mais 7,8 milhões de inscritos, ampliando a abrangência de seu público e contando ainda com as práticas de recomendação da plataforma e de sua forte audiência que concorre com a da Rede Globo. Oportuno lembrar ainda que a concessionária recebeu do Google, em 2017, financiamento de US$ 300 mil, no âmbito do projeto Google News Initiative, o que revela a relação entre as duas empresas com interesses comerciais comuns, a ponto de, como mostram diversas pesquisas, a plataforma calibrar seus sistemas algorítmicos para a ampliação do alcance dos conteúdos veiculados pela Jovem Pan em períodos de campanha eleitoral, beneficiando amplamente os discursos em favor de Jair Bolsonaro.

Sendo assim e neste momento em que as forças reacionárias de extrema-direita estão cada vez mais organizadas e motivadas para as próximas eleições municipais, com o claro objetivo de se prepararem para as eleições de 2026, é incompreensível a conduta adotada pela AGU representando a União que, investida da atribuição de defesa da democracia e configuradas as hipóteses legais que autorizam o cancelamento da concessão da Jovem Pan, tergiversa, interpretando a lei de forma questionável, deixando de exercer atribuição que lhe foi conferida e de se utilizar do caminho aberto pelo MPF-SP.

Nesta altura do campeonato, a União está contemporizando por quê?

*Flávia Lefèvre é advogada especializada em direito do consumidor, telecomunicações e direitos digitais e mestre em Processo Civil pela PUC-SP. Integra o Conselho do Instituto Nupef e é advogada do Intervozes em diversas ações judiciais.

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