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As tecnologias de resistência da população negra ao mercado de dados e à vigilância

De algum jeito permanecemos aqui – por que como diria Conceição Evaristo, a gente combinamos de não morrer. Como?

Mão amiga? As políticas públicas são mais efetivas que a repressão policial - Imagem: Giulian Serafim/PMPA
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Por Horrara Moreira

Numa noite sonhei que meu filho brincava na calçada em frente à casa que morei na minha infância e eu ia ao seu encontro. No caminho, o céu ficou denso, breu como a fumaça de pneu queimado. Não chovia, mas a terra começava a encher d’água e em pouco tempo meus pés não tocavam o chão. Meu coração palpita, meu corpo está em alerta, busco fôlego e tento alcançar a mão do meu filho, que começa a se afogar próximo a mim.

Então, Mwana Pwo surge enorme no horizonte, envolvida por uma luz violeta. Mwana Pwo é a representação feminina de fertilidade, procriação e continuidade da sociedade na qual está inserida, representa a ancestralidade feminina para o grupo etnolinguístico Cokwe. Ao tocar a mão de meu filho, fico serena e sorrio. Estamos sós e vamos morrer juntos. A terra do jeito que conhecemos, acabou. Acordo sobressaltada. Inquieta. Me preparo para mais um dia de trabalho.

O tempo na cosmologia afro-brasileira é percebido de forma diferente do evolucionismo etnocêntrico ocidental, de progresso, de futuro que consome e aniquila. De acordo com a antropóloga Ronilda Ribeiro, em “Alma Africana no Brasil: Os iorubás”, não há narrativa na cultura afro-brasileira que preveja o fim do mundo. O mundo não acaba, as pessoas, sim. 

Destruir o passado é a forma mais eficiente de capturar o futuro. Essa estratégia de dominação é antiga e diante disso, me perguntei o que eu saberia dizer sobre ancestralidade? Por que resistir? Para quê? Como? Fiquei matutando muito para escrever este ensaio. O título carrega uma responsabilidade, não devo desperdiçar caracteres nem dizer bobagens. 

Sendo a raça um constructo social, não existindo na sua forma biológica, devo alertar que apesar de ser uma pessoa de pele preta, cresci distante de tudo que se podia associar a cultura afro-brasileira, não faço aqui um mea-culpa por isso. Essa desconexão ancestral é sistêmica.

A responsabilidade por essa ausência de pertencimento se deve ao fato de que o Brasil, através de sua necropolítica (termo cunhado pelo filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe, em 2003, que se refere ao uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer), tenta apagar de sua origem a responsabilidade por um dos crimes mais bárbaros da história da humanidade: o sequestro transatlântico de pessoas oriundas de África, e genocídio dessa população, executado sistematicamente por política higienistas. 

Contudo, contrariamos a previsão feita em 1911 no Congresso Universal das Raças pelo antropólogo João Batista de Lacerda, representante da República do Brasil, de que por volta do século XX, mais ou menos no ano de 2012, não deveria existir mais pretos (Reis, 2009). 

Bem, 2022, eu continuo viva e 54% da população brasileira continua negra. Então de algum jeito permanecemos aqui, porque como diria Conceição Evaristo, a gente combinamos de não morrer. Como?

Os dados narram a história, não atoa Rui Barbosa incinerou os registros referentes a escravidão em 1890 em nome da honra da pátria e “em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com as grandes massas dos cidadãos que a abolição do elemento servil, entraram na comunhão brasileira”.

Também são essenciais para formulação de políticas públicas, temos como exemplo a inserção da variável raça/cor no Sistema de Informação de Mortalidade, conquista do Subgrupo Saúde do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra em 1995. Entretanto, dados também são instrumentalizados para controle e genocídio de pretos e pobres. 

Seja pela ação direta como no caso do uso de tecnologias de reconhecimento facial por forças de segurança pública, seja de forma indireta ao disponibilizar o acesso ao atendimento previdenciário em formato digital, por exemplo, num país com abismos gigantescos quanto ao acesso à internet e ao letramento, sobretudo o digital.

O realismo capitalista, ideologia que circula em nosso tempo e estrutura a produção em diversos formatos, captura todas as áreas da experiência contemporânea. A raça é então instrumentalizada para exercer a dominação e exploração de corpos pretos para expropriação de riquezas, destruindo qualquer tradição que fuja de seu propósito. 

Desde o mercantilismo escravista moderno iniciado no século XV, o capitalismo que agoniza, mas não morre, transforma-se constantemente: do capitalismo financeiro, caminhamos para o capitalismo de dados, observado por Schonberger e Ramge (2018). Segundo os autores, os dados estão substituindo o preço como elemento estrutural na relação entre produtor e consumidor. 

Nessa equação, o Estado é o responsável por disciplinar os corpos e mantê-los aptos para a exploração, exercendo seu tecnoautoritarismo, nada escapa. A política de digitalização e desburocratização que ganhou forma no governo Bolsonaro alavancou a datificação de políticas públicas

O Cadastro Base do Cidadão, instituído pelo Decreto 10.046/2019, unifica os dados sobre o cidadão dentro do governo, especialmente os mantidos pelo Cadastro de Pessoa Física. Sem uma conta no Gov.br não foi possível acessar por exemplo o auxílio emergencial, extremamente importante para a subsistência da população negra e pobre no Brasil. 

Em 2022, o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), empresa pública vinculada ao Ministério da Economia, foi autorizado a comercializar dados pessoais dos brasileiros com terceiros. Recomendo uma olhada rápida no cardápio de dados disponíveis para compra, encontram-se no anexo da portaria que regulou a prática, segue um aperitivo: CPF e situação cadastral, nome, data de nascimento, data de óbito, telefone, CNPJ.

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), emitiu nota favorável à prática, indicando que não há incompatibilidade com a Lei Geral de Proteção de Dados. Vale lembrar que foi também em 2022, que o direito a proteção de dados foi incluído na Constituição passando a integrar o rol de direitos fundamentais, que tem como objetivo garantir a vida digna e proteger os cidadãos.

No mercado de dados, a moeda de pagamento é a sua subjetividade e experimentamos isso cotidianamente, como bem pontuou o professor Sergio Amadeu da Silveira em resenha para o livro Comunidades, Algoritmos e Ativismos: olhares afrodiaspóricos, organizado por Tarcízio Silva: 

“Quem antes invadiu nossos mundos em busca de madeira, ouro e petróleo, agora adentra e tenta formatar nossas subjetividades com plataformas que buscam extrair nossos dados, modular nossas expectativas, reduzir nossas escolhas, predizer nossa vontade e embarcar nos códigos e sistemas algorítmicos as estruturas de dominação patriarcais, racistas, étnicas e classistas.”  

Se experimentamos hoje o avanço do colonialismo digital (Lippold & Faustino, 2022), que fragmenta a experiência social, é preciso retomar as tecnologias sociais, ancestrais, afrocentradas. Dominar ferramentas dos que nos oprimem.

Convoco a todos os meus irmãos e irmãs. É a hora de provocar revoltas através do envio de bilhetinhos por tabuleteiras malês de agora. Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje. Concentrar esforços para abrir flancos, se aquilombar digitalmente, organizar revoluções. Vejo vocês num outro plano.

*Horrara é mulher negra de axé, cisgênero, bissexual periférica, mãe do Yasuke, articuladora e comunicadora social no projeto Defendendo o Brasil do Tecnoautoritarismo, da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. Coordenadora da Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira. Graduanda em Direito pela UNIRIO, aprovada no XXXV exame da OAB. Atua como educadora popular em direitos humanos desde 2015.

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