Letícia Cesarino

Na era das big tech, o populismo na política veio pra ficar

Anitta e a campanha de Lula entenderam isso. E o resto da esquerda?

A cantora Anitta manifestou apoio a Lula em suas redes sociais. Foto: Reprodução
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Muitos hoje, na esquerda e no centro democrático, lamentam a polarização política, a perda do debate e das propostas, a exaltação das emoções e dos afetos, a política feita “com o fígado”. Estes e outros comportamentos – que alguns associam à dimensão populista da política – sempre foram, porém, parte do jogo.

Em democracias saudáveis, essa dimensão, que se liga à livre expressão das vontades e insatisfações dos cidadãos, é contrabalançada por outra, referente aos procedimentos pelos quais essas demandas podem ser organizadas e redistribuídas de forma o mais justa possível.Enquanto a primeira garante a expressão da soberania popular e da voz do cidadão comum, a segunda garante o equilíbrio político por meio de contrapesos institucionais, proteção aos direitos de minorias e procedimentos de ordem impessoal e técnica levados a cabo pela burocracia do Estado, por experts, etc.

Haveria, hoje, uma inflação exagerada do polo populista em detrimento do polo liberal-institucional e tecnocrático? Essa desproporção de fato existe – e se deve muito ao tipo de viés sócio-técnico introduzido na política eleitoral pelas big tech. Essas plataformas são construídas a partir de uma lógica técnica muito diferente daquela que organizava as instituições democráticas no mundo pré-digital. Ela se parece mais com dinâmicas do mundo do marketing de massa, do mercado financeiro, ou mesmo das chamadas guerras híbridas.

A política populista se organiza em torno de dois códigos binários: amigo-inimigo e elite-povo

Alguns argumentam que, na medida em que a política passa a operar cada vez mais pela internet participativa, o que ocorre não é um apagamento completo do polo liberal-institucional e tecnocrático, e sim uma redistribuição estrutural dessa dicotomia. Nessa reorganização, a dimensão populista deixaria de se associar a momentos extraordinários de crise, como nos casos históricos clássicos, para se tornar uma camada permanente – a própria linha de frente – da paisagem político-eleitoral como um todo. Usuários de internet estariam deixando de fazer escolhas eleitorais com base em planos de governo, propostas e partidos, para se fiar no carisma pessoal dos candidatos, na performance estética de vídeos, slogans e imagens, na confiança nos novos mediadores: influenciadores não apenas do campo da política, mas do entretenimento, da religião, do consumo de marcas, da saúde, etc. Muitos destes serão, inclusive, candidatos a cargos legislativos nas próximas eleições.

Com a primazia do polo populista nas plataformas, entende-se por que a política eleitoral tende a assumir uma forma dicotômica, polarizada em dois campos. A política populista se organiza em torno de dois códigos binários: amigo-inimigo e elite-povo, sendo terceiras posições relegadas a um espaço residual que encontra dificuldade em se consolidar como força política relevante. É o que parece estar acontecendo, este ano, com a malfadada terceira via: o candidato melhor posicionado nesse espaço, Ciro Gomes, consegue se manter ali, justamente, polarizando com a polarização. A não ser que um fato muito surpreendente aconteça, nada indica que essa configuração mudará até outubro. Métricas em tempo (quase) real, como nas pesquisas de opinião e mídias sociais, não apenas nos mostram que a polarização binária já está dada no comportamento do sistema sócio-técnico como um todo, como ajudam a reforçar, recursivamente, a própria polarização.

O recente apoio de Anitta à campanha Lula demonstra uma compreensão deste cenário. No atual sistema político-eleitoral, é este candidato quem ocupa o único lugar estrutural viável para impedir a reeleição do atual presidente. Como argumentei para o caso de Bolsonaro em 2018, as novas mídias fazem com que este lugar se organize de modo fractal: Lula é ao mesmo tempo um, e muitos. Ele é capaz de agregar em torno da sua imagem – que Ernesto Laclau chamaria de um significante vazio – um caleidoscópio dinâmico e multi-escalar onde cada segmento social e, no limite, cada indivíduo votará nele pelas suas próprias razões. Essas razões podem envolver uma adesão refletida e consciente ao programa de governo do PT, mas também podem envolver a exasperação com os preços dos alimentos, o arrependimento do voto em Bolsonaro, ou simplesmente confiar na sugestão da sua artista favorita. Estes não são comportamentos irracionais. São escolhas apropriadas à lógica da política em rede. 

Uma pessoa sozinha não é capaz de alterar o resultado eleitoral num contingente de 156 milhões de eleitores. Porém, o peso algorítmico de uma super-celebridade internacional como Anitta não pode ser subestimado. Em todas as mídias sociais, ele é desproporcional: supera em muito o de Bolsonaro e Lula juntos. Poucos perfis são capazes de dar a “invertida” que a cantora deu no presidente no Twitter esta semana. Além disso, como tem notado o ótimo acompanhamento da @noseconexoes no mesmo site, Anitta tem adotado estratégias de marketing digital inteligentes, como o uso despretensioso de memes sem cunho político no Instagram, mas que replicam a imagem do candidato de forma sutil, positiva ou divertida. Podemos lamentar as transformações da política eleitoral sob a influência das novas mídias. Mas é um erro ignorar que é neste plano que, gostemos ou não, boa parte do jogo eleitoral será jogado daqui pra frente. A campanha Lula já entendeu. Falta a muitos de seus apoiadores entenderem, e entrarem neste jogo para vencer.

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