Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

O vandalismo administrativo e político do bolsonarismo

Redução, predação e depredação são as afinidades eletivas do movimento que o presidente representa

Foto: NORBERTO DUARTE / AFP
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Matéria publicada pelo UOL nesta segunda-feira 6 mostra que o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar, chamada de “Alimenta Brasil”, tem sofrido seguidos cortes nos últimos anos. As reduções drásticas se iniciaram ainda no governo de Michel Temer, mas se aprofundaram nos anos de Jair Bolsonaro, com a exceção de 2020, quando em função da pandemia houve recursos extras – que, contudo, não foram gastos integralmente. O levantamento foi feito pelo gabinete do deputado Heitor Schuch (PSB-RS).

Para se ter uma noção do tamanho do desmonte, o orçamento para esta política pública em 2021 representou apenas 10% do que foi dispendido em 2012, segundo ano do governo de Dilma Rousseff. Além de desmilinguir a ação, Bolsonaro mudou seu nome – algo compreensível dentro de sua relação com adversários, uma vez que a política foi criada no primeiro mandato de Lula. Assim, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) passou a se chamar “Alimenta Brasil”. Como rótulo de marketing a nova denominação é mais charmosa, mas a política pública, propriamente dita, deixou de existir.

Dessa maneira, dando continuidade à redução dos valores iniciada por Temer, Bolsonaro de uma só tacada minou o apoio à agricultura familiar e o socorro aos famintos. E tem mais: o pouco dinheiro que sobrou, em vez de ser alocado de forma a priorizar as regiões mais pobres, é distribuído por meio das emendas de relator – aquelas do “orçamento secreto”. Em vez de acudir quem não tem o que comer, o governo Bolsonaro e sua base congressual matam a fome insaciável de dinheiro do Centrão.

O desmonte de uma política social é um exemplo claro de como três formas distintas de atuação se combinam no bolsonarismo: redução, predação e depredação.

A redução é o mote do neoliberalismo de Paulo Guedes, precedido pela “Ponte para o Futuro” de Temer. Deixam-se à míngua os setores sociais e as políticas consideradas desimportantes pelo governo. Acudir os famintos, para eles, é desimportante.

A predação é operada por aqueles acostumados a sugar recursos públicos em benefício próprio, como fazem o Centrão e setores privilegiados da máquina pública ou do setor privado, aquinhoados por benefícios direcionados. Os militares, com os ganhos corporativos com que foram brindados, enquanto outros ganhavam uma reforma previdenciária, exemplificam essa predação praticada por setores da própria máquina. Isso, claro, sem esquecer dos mimos para lazer sexual de nossos bravos soldados.

Já a depredação fica a cargo de todos os responsáveis por desmantelar instituições e políticas governamentais necessárias às finalidades públicas e ao atendimento de direitos – que levaram anos para serem construídas. A esse respeito, aliás, vale a pena ler o excelente artigo escrito por Fernando Abrucio no Valor Econômico de 3 de junho, intitulado “O Estado não é inimigo da cidadania”.

Esse vandalismo administrativo e político da depredação tem grande visibilidade na área da cultura, por meio da cruzada obscurantista que caracteriza a guerra cultural. Contudo, ocorre igualmente noutros setores. São vandalizadas (ou depredadas) as políticas de saúde, educação, relações exteriores, direitos humanos, ciência e tecnologia etc.. Note-se que não se trata de mudança de agenda, ou da “mera” predação – que parasita, mas não necessariamente ao ponto de destruir. A depredação é pura destruição em estado bruto.

Essas três formas de atuação do bolsonarismo não têm as mesmas origens, nem as mesmas motivações, mas encontraram neste governo uma oportunidade de combinação e reforço recíproco. Elas têm entre si o que o grande sociólogo alemão, Max Weber, chamava de “afinidades eletivas”. No grande clássico de Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, essa ética religiosa e esse espírito econômico se atraíam e se combinavam de forma a se reforçarem mutuamente, ensejando o desenvolvimento de um certo tipo de sistema econômico num determinado ambiente religioso.

Note-se que não é de causação que se trata: a ética protestante não gerava o espírito capitalista, ou vice-versa. Pode-se dizer, singelamente, que eles foram feitos um para o outro. A propósito, Weber emprestou o termo de Göethe, que o utilizou para, numa obra intitulada exatamente As Afinidades Eletivas, tratar da atração recíproca de um casal apaixonado. Uma excelente síntese de toda essa discussão é feita por Michael Löwy num artigo publicado em PLURAL, revista do Departamento de Sociologia da USP.

Pois bem, no governo Bolsonaro em vez de um casal tradicional, o que temos é um trisal transgressivo (embora reacionário) formado pelo ultraliberalismo econômico, o parasitismo político-administrativo e o vandalismo obscurantista. Cada um deles leva para essa relação algo que tem química, pois se encaixa bem com os outros dois.

Portanto, não há nada de tão estranho ou improvável na combinação entre esses diferentes componentes do atual governo, que produz a devastação que presenciamos nas mais diversas frentes.

A redução neoliberal e o parasitismo predatório contribuem para a depredação – propósito maior deste governo, pois são destrutivos.

A depredação, por sua vez, ao desmantelar áreas inteiras da administração pública, bem como as políticas que delas dependem, auxilia o neoliberalismo na redução de gastos.

Já a predação, num cenário de desorganização geral promovida pelos outros dois, apropria-se do que sobra para alocar recursos da forma mais conveniente para seus promotores; sem um governo estruturado, não há prioridades claras, sem prioridades claras, a alocação predatória ganha terreno.

É por isso que militares, olavistas, neoliberais, políticos do Centrão e empresários predatórios se entendem neste governo, a despeito de rusgas aqui e ali. Afinal, casais e trisais apaixonados também têm seus dias de desavença. Não precisam partir das mesmas ideias, nem dos mesmos interesses para que possam, juntos, formar a equipe destrutiva que caracteriza o atual grupo ocupante do poder.

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