Fora da Política Não há Salvação
Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.
Fora da Política Não há Salvação
Chapa Lula-Alckmin lembra a aliança das Diretas Já
Uma junção entre adversários que ainda se reconhecem nessa condição só faz sentido se o que os une for bem maior e bem mais importante do que aquilo que os separa
Em seu discurso de filiação ao PSB, o ex-governador paulista, Geraldo Alckmin, deu o tom do que significa sua aliança com o ex-presidente Lula.
“Temos que ter olhos abertos para enxergar, a humildade para entender aquele que melhor reflete e interpreta o sentimento de esperança do povo brasileiro. Aliás, Lula representa a própria democracia porque ele é fruto da democracia.”
Em seu Twitter, o ex-presidente postou uma mensagem de sentido convergente: “O fato de ser adversário não quer dizer que você é inimigo. O Alckmin está se filiando ao PSB, os partidos e nós ainda vamos ter que conversar e eu ainda estou definindo a candidatura. Se nos aliarmos e ganharmos as eleições, tenho certeza de que podemos fazer um grande governo.”
Uma aliança entre adversários que ainda se reconhecem nessa condição e que, inclusive, já se enfrentaram numa acirrada disputa presidencial em 2006, só faz sentido se o que os une for bem maior e bem mais importante do que aquilo que os separa. E, de fato, o que os une não é um programa comum de políticas públicas, ou convicções ideológicas à esquerda ou à direita, mas a concordância sobre a necessidade de defender a democracia do ataque que o bolsonarismo lhe perpetra. Não por outra razão, Alckmin fez a seguinte observação:
“Alguns podem estranhar. Eu disputei com o presidente Lula a eleição em 2006 e fomos para o segundo turno, mas nunca colocamos em risco a questão democrática. O debate era de outro nível, nunca se questionou a democracia”.
E é exatamente este o questionamento feito pelo bolsonarismo. Isso não é propriamente uma novidade, descoberta após os pouco mais de três anos do capitão e sua trupe no governo. Em 2018, Bolsonaro já era figura política sobejamente conhecida. Era nítido a quem tivesse “olhos abertos para enxergar” que a disputa do segundo turno naquele momento significava o enfrentamento entre a civilização e a barbárie. Contudo, houve quem não desse a devida importância a esse evidente contraste naquele momento, ou deixasse seu rechaço ao PT turvar a visão do perigo bolsonaresco.
Ciro Gomes foi para Paris, minimizando o risco que Bolsonaro representava para a democracia brasileira. Ressentido, voltou apenas para votar – como ele mesmo sói lembrar. Ou seja, apesar de ter a responsabilidade de homem público, justifica sua omissão com uma desculpa que apenas faz sentido para cidadãos comuns, sem a sua responsabilidade de candidato presidencial e liderança de um partido.
O PSDB em parte se bolsonarizou, como no caso de “BolsoDória”, em parte se omitiu, como no caso de Fernando Henrique Cardoso e do próprio Geraldo Alckmin (que agora, porém, corrige o erro). Algumas mentes mais lúcidas do partido, como o já falecido ex-governador de São Paulo Alberto Goldman e o vereador paulistano Daniel Annenberg, anunciaram seu apoio a Haddad – isto é, à democracia – no segundo turno. Foram atacados por isso por muitos de seus eleitores e colegas de agremiação.
Muitos órgãos de imprensa naturalizaram Bolsonaro, como se ele não fosse o extremista de sempre. A Folha de S.Paulo se negou a chamá-lo pelo que é (candidato de extrema-direita), assim como o fizeram os veículos das organizações Globo. O Estadão foi um passo além: em seu famigerado editorial no qual falou de uma “escolha difícil”. Pelo tom de editoriais recentes, editorialistas do jornal mostram que não esqueceram nada, não aprenderam nada.
A preocupação comum com a defesa da democracia, unindo adversários que, se eleitos, deverão ajustar suas preferências programáticas (um problema menor) explica também porque é necessário deixar de lado velhos ressentimentos. No caso do PT, de nada adianta remoer as mágoas do impeachment às avessas que apeou Dilma Rousseff da Presidência. No caso dos ex-tucanos, de nada serve queixar-se da postura de oposição irresponsável que os petistas fizeram a governos do PSDB.
É por isso que a aliança acontece e, quando questionado por jornalistas sobre sua posição diante do impeachment de Dilma, Alckmin opta por ressaltar seus atributos de mulher honrada e a posição de cautela que ele supostamente teria adotado à época. Ao tratar do assunto, o provável vice de Lula faz menções a suas convicções parlamentaristas – num reconhecimento tácito de que o afastamento da presidenta foi, na verdade, um voto de desconfiança por vias transversas.
Esse caráter amplo e de secundarização de divergências, em prol da democracia, é o que confere à aliança construída em torno da chapa Lula-Alckmin certa semelhança com o palanque das Diretas Já. Naquele momento, colocavam-se lado a lado figuras de direita e de esquerda; desde dissidentes do regime militar (representados em espírito e em música por Teotônio Vilela) até comunistas banidos pela ditadura, como João Amazonas.
Em meio a eles, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Orestes Quércia, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Leonel Brizola e Lula – para mencionar os mais vistosos. Essas lideranças, que perfilavam lado a lado no enfrentamento democrático à ditadura militar, representavam um amplo espectro político-ideológico. Talvez por isso mesmo Alckmin diga que Lula “representa a própria democracia porque ele é fruto da democracia”.
É a democracia que oferece um terreno comum aos divergentes, para que possam divergir e competir como adversários, não como inimigos. Desse modo, é ela que lhes permite se juntar, a despeito das diferenças. Construída dessa forma, a chapa ocupa boa parte do espaço que muitos acalentavam ser o de uma frente ampla democrática. E, por isso mesmo, torna ainda mais difícil e improvável a viabilização de uma terceira via fora da bipolarização entre o extremismo direitista de Bolsonaro e o esquerdismo moderado de Lula.
A importância desse tipo de aliança ainda se dá por outra razão. Não se trata apenas de vencer nas urnas o autoritarismo bolsonaresco, amparado no “partido militar” que se locupleta em milhares de cargos e benesses governamentais. Trata-se também de criar condições para uma posterior reconstrução nacional. O bolsonarismo deixará como legado um país destruído.
Está em curso uma devastação de políticas públicas, de instituições, do ambiente democrático. Produz-se um estrago monumental, como o que ocorre num país devastado por uma guerra – ainda que não se trate, predominantemente, de uma destruição da estrutura física. O bolsonarismo perpetra uma devastação de instituições e políticas que são legadas não só de nosso período de redemocratização – em especial a partir Constituição de 1988. A devastação atinge inclusive construções políticas anteriores ao período democrático de 1945-1964, outras produzidas durante sua vigência, outras ainda criadas durante a ditadura militar.
O próximo governo precisará de um amplo espectro de apoios no sistema político e na sociedade para esse processo de reconstrução. Ainda mais considerando a articulação de poder estruturada desde o início do governo de Michel Temer, mas muito piorada durante o mandato de Bolsonaro. Essa articulação confere ao Centrão e seus próceres um controle inaudito sobre instrumentos orçamentários e administrativos, implantando práticas predatórias cujo desmonte será bem difícil.
Se a aliança não for ampla, estaremos fadados a ter o processo de reconstrução sequestrado por setores da classe política que parasitam o Estado há décadas e, hoje, são cúmplices do descalabro bolsonaresco. Isto é, a reconstrução do país não passa apenas por políticas públicas e normas legais descontinuadas, mas também por uma rearticulação política que consiga por freio a essa predação levada a cabo por atores políticos despreocupados com os interesses gerais e de longo prazo do país. Se isso não for resolvido, corremos o risco de fracassar uma vez mais.
A presença de Alckmin na chapa de Lula aumenta os canais de interlocução com setores políticos e sociais cuja capacidade de dialogar com o PT é pouca. Assim, amplia o espectro e confere mais poder – sim, poder – ao futuro governo para desatar os nós. Afinal, sem poder não se governa, não se resiste ao autoritarismo, muito menos se reconstrói um país.
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