Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

Bolsonaro no país das fantasias

‘Ele jamais desaponta quem espera dele apenas o que ele é e sempre foi em sua trajetória na política: um boçal alucinado e truculento’

O presidente Jair Bolsonaro na ONU. Foto: Alan Santos/PR
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Tão logo o presidente Jair Bolsonaro encerrou seu discurso na abertura da Assembleia Geral da Organizações das Nações Unidas, recebi o telefonema de um jornalista. De saída ele, irônico, indagou: “Professor, em que planeta o Bolsonaro vive?”, a que lhe retorqui: “Acho que é o caso de perguntarmos em que galáxia”. Pensando um pouco mais, vale questionar: em que dimensão do universo?

Na ONU, Bolsonaro não dirigiu sua declaração para os líderes de outras nações, nem sequer para seu país, mas para seu séquito no Brasil – aquele grupo de lunáticos a que ele chama de “povo” e que acredita em suas bravatas, mentiras e alucinações. Não é à toa, aliás, que uma produtora bolsonarista de vídeos se chama “Brasil Paralelo”. A realidade sob o prisma bolsonaresco não é a dos fatos comprováveis, das evidências empíricas ou sequer da lógica formal, mas a do delírio de um universo paralelo – quiçá de um país paralelo.

Sabedores que somos disso, não é o caso de sermos surpreendidos pelo presidente. Bolsonaro nunca surpreende, embora sempre choque. Ele jamais desaponta quem espera dele apenas o que ele é e sempre foi em sua trajetória na política: um boçal alucinado e truculento. Nos últimos anos, contudo, ele se aprimorou em sua perversidade, emprestando a ela mais método do que no começo. Não casualmente, chegou à Presidência da República.

A mentira e a disseminação do ódio como formas de fazer política se mostraram muito eficientes para o eleger, assim como para manterem atiçada a sua malta mais fiel. E, ao menos quanto a este último objetivo, sua passagem por Nova York foi mais uma empreitada de sucesso. Assim como no 7 de Setembro fascista, o “mito” conseguiu as fotos que desejava.

Na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista, obteve a concentração de multidões eufóricas que lhe possibilitaram afirmar que o “povo” lhe apoia. Fez questão de observar isso em seu discurso na ONU, com as distorções de praxe, afirmando falsamente serem aquelas as maiores manifestações de nossa história, além de defenderem a democracia, as liberdades individuais e – não menos importante – seu governo. Verdadeiro foi apenas o apoio ao governo; todo o resto é, novamente, distorção bolsonaresca. A não ser, claro, que entendamos que apoios à ruptura institucional, comemorações de estados de sítio (ainda que imaginários) e invocações de golpe militar sejam formas de defender a democracia e as liberdades individuais.

Nas ruas de Nova York, Bolsonaro logrou também obter suas fotos, caminhando em meio a uma claque de bajuladores pelas ruas de Manhattan e comendo pizza aos pedaços na calçada. Temos aí a versão internacional e pandêmica do leite condensado no pão, celebrizado pelo atual mandatário em seu café da manhã propagandístico. Assim, ao mesmo tempo atingiu dois objetivos. Em primeiro lugar, afrontou o prefeito nova-iorquino, seu desafeto, zombando das regras sanitárias da cidade visitada, impedido que estava de adentrar a qualquer restaurante por não apresentar comprovação de ter sido vacinado. Em segundo lugar, exibiu sua pretensa humildade de homem comum, que devora em pé comida barata, em vez de usufruir do requinte dos restaurantes sofisticados da Big Apple.

Deixemos de lado aqui, por ora, que nada baratas foram a picanha esturricada, nem as carnes nobres, provavelmente mais bem preparadas, pedidas por Bolsonaro e seus comensais na filial nova-iorquina de luxuosa churrascaria brasileira. Causa espécie isso, de sair do Brasil para comer churrasco à moda nacional (ou mais passada) em breve passagem numa terra estrangeira. Bem, o que é isso para quem já se deliciou com miojo no Japão, optando por uma versão mixuruca da notável culinária nipônica? Novamente, o “mito” reforçou a imagem do homem “do povo”, de hábitos simples, inadaptável à sofisticação da vivência cosmopolita dos chefes de Estado em seus périplos internacionais.

Assim, não vacinado, Bolsonaro quebrou o “sistema de honra” da ONU ao comparecer ali sem estar imunizado. Mas o que é honra para alguém como Bolsonaro? Tosco e mentiroso, o vexame que protagonizou reforçou o isolamento do País e sua condição de pária internacional, diligentemente construídos durante seu mandato. Notável, aliás, que uma das poucas coisas que seu governo (sic) construiu é, na realidade, uma desconstrução.

Nessa viagem desonrosa, aliás, Bolsonaro teve companhia e assistência. O personagem mais vistoso foi, sem dúvida, seu quarto ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, o Iracundo. Num governo de gente afeita a xingamentos, ameaças de vias de fato e piadas infantis ou de mau-gosto, nada mais adequado do que um ministro que, colérico com manifestantes críticos à gestão que integra, mostra-lhes com as duas mãos o dedo médio. Lamentavelmente, a performance ficou incompleta, pois não foi possível captar o áudio do que bradou o doutor Queiroga naquele momento de fúria patriótica à moda bolsonaresca. Ficamos apenas com as imagens, que já mostram muita coisa.

Há ao menos um segundo momento pitoresco da visita da comitiva presidencial de 18 pessoas a Nova York. Trata-se da ida do filho 03, Eduardo Bolsonaro, à Apple Store, quando foi apupado por um brasileiro que ali se encontrava. É sabido que 03 é um assíduo acompanhante de viagem do pai em suas idas ao exterior – em especial aos EUA –, o que se explica pela confiança que tem o presidente no talento do filho para as relações internacionais.

A visita à loja da Apple na Big Apple poderia nos induzir a pensar que talvez o filho apenas estivesse ali para – quem sabe? – comprar o novo iPhone 13, que tão útil pode ser para mandar fake news pelo WhatsApp. Fosse isso, o dano seria menor, já que se trataria apenas de mau uso do dinheiro público para turismo familiar de compras nos Estados Unidos. O prejuízo, contudo, não foi desprezível, pois Eduardo Bananinha contribuiu para a redação do discurso delirante que seu pai fez na ONU.

Como noticiado, o 03 ajudou o progenitor a cortar as partes mais consentâneas com a diplomacia tradicional do Itamaraty, redigidas pelo pessoal profissional de nosso corpo diplomático. Tais passagens foram substituídas por ataques à imprensa, defesa do “tratamento precoce” para a Covid, negação do desmatamento e da corrupção, apologia do assimilacionismo indígena, pensamento mágico na economia, reacionarismo nos costumes (como sempre, disfarçado de conservadorismo), desfeitas contra governadores e prefeitos, dentre outras barbaridades congêneres.

Do mais usual nos discursos presidenciais de outrora naquele lugar, apenas a reivindicação de um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU e um panegírico de nossas potencialidades econômicas, tentando atrair a boa vontade de investidores internacionais. Contudo, também aqui a mentira bolsonaresca atrapalhou as coisas. Fazendo jus à sua predileção pela tortura e por torturadores, Bolsonaro torturou os números até que eles não só confessassem absurdos, mas correspondessem a seus delírios. O cenário econômico descrito por Bolsonaro foi condizente com os desvarios do arremedo de programa de governo apresentado em 2018, em que Paulo Guedes projetava zerar o déficit primário em um ano, reduzir em 20% o volume da dívida e faturar 700 bilhões de reais em privatizações.

A passagem da trupe bolsonarista por Manhattan não gerou apenas mais um grande vexame internacional do País nestes últimos três anos; ela ratificou para o mundo a brutal encalacrada em que nosso País se meteu. Não se trata apenas de um governo de incompetentes ou deslumbrados, embora seja isso também. O que temos é um governo de perversos, que cultuam e cultivam a morte – uma tanatocracia.

Claro que, como sempre em países submetidos a governos dessa estirpe, os culpados não são apenas aqueles que ocupam postos de responsabilidade política no Poder Executivo – civis e militares –, mas todos os que coonestam tal situação. Por isso, a cumplicidade tanatocrática de Arthur Lira e seus aliados no Congresso, da Procuradoria Geral da República e de boa parte do empresariado nacional são fatores fundamentais para que se prolongue a destruição, a predação e o morticínio bolsonaristas.

Diante disso, o opróbrio internacional talvez não só seja o de menos, mas quiçá, paradoxalmente, contribua em alguma medida para a superação do problema, atraindo para o Brasil olhares do mundo, revelando que não nos cabe apenas condenação e desprezo, mas alguma solidariedade. Precisaremos dela não só para caminhar mais seguramente até o final de 2022, como também para o processo de reconstrução e recuperação que será inescapável nos anos que se seguirão a esta calamidade.

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