Fashion Revolution

O sucesso do coletivo Preta Chic, liderado por mulheres trans e pessoas não binárias

O projeto nasceu na garagem de uma casa localizada na periferia de Fortaleza (CE)

Apoie Siga-nos no

O dia 8 de março é marcado por um processo de revolta, por mulheres que lutavam pelo fim do trabalho análogo à escravidão em uma fábrica de roupas, na Rússia. Até hoje, lutamos pela igualdade de gênero que, desde sempre, vem dessa fissura de formação dos processos de construção social.

Estar dentro desse sistema, com corpas de mulheres sendo valorizadas, representa um sentimento de liberdade e euforia, que engloba o mercado da moda brasileiro, conhecido por seus feitos ancestrais e por diversas mãos femininas de costureiras, artesãs, mulheres pretas, indígenas e outras. 

Estar entre essa fissura não é fácil, principalmente quando incluímos mulheres negras, trans e travestis. Sentir a imensidão de nossos sentimentos retraídos e violados por quem não nos entende e tampouco as nossas especificidades, além de viver, caminhar e ser mulher, é estar a todo momento com o modo “cuidado” ativado. 

Mulheres com papéis de tomada de decisão e gerência, dentro do Congresso, e mulheres indígenas, que hoje estão ocupando vários espaços como fala Sônia Guajajara no podcast “Moda e Política”, do Fashion Revolution Brasil, para provocar esse chamado para a consciência, é preciso. Atuar ao lado de pessoas que vivem, respiram outras realidades e entendem essa urgência de conexão ancestral e para com a Natureza, não é uma opção, e sim, um movimento urgente e indispensável.

Hoje, as mulheres ocupam 17% da Câmara dos Deputados, que já intitula-se com “deputados” no final, com a principal ideia de excluir e ser estritamente masculina. Nós, mulheres, estamos cada vez mais adentrando esses espaços e revolucionado o sistema composto por homens brancos que não olham para questões de gênero, raciais e socioambientais. Estamos ocupando esses espaços com mulheres indígenas, mulheres negras, trans e travestis, e muitas outras, que são nossas vozes dentro de locais que, diariamente, invalidam nossos direitos. 

Moda, sustentabilidade e mulheres, porque estão todos interligados? 

 Quando paramos para estudar história da moda e suas revoluções, é nítido ver que quem fez o burburinho que causou a revolução da moda, na real, foram as mulheres, que até hoje lutam para conquistar espaços e vencer o feminicídio resultado de uma política machista que a moda também se envolveu. Quantas mulheres não morreram quando resolveram usar calças ao invés de vestidos? 

Um relato bem recente que me tocou bastante foi da jornalista Mari Palma, em que ela fala sobre a coragem de ser quem é, e que a roupa que você veste não limita quem você é. As declarações me ressaltaram que hoje estar bem e estar me amando é um “tô nem aí” bem grande para o preconceito que nos rodeia todos os dias.

Nos objetivos sustentáveis da ONU foram estabelecidas várias metas em relação a igualdade de gênero, uma delas  a meta 5.2. Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos”. 

Quando me vi sendo violada pela primeira vez, fiquei inconformada do porquê estava acontecendo comigo. Sem ação nenhuma, a única coisa que consegui dizer foi ‘não’, como se tivesse algo que me puxava para baixo; Eu só tinha 16 anos e queria sair com as minhas amigas. Naquele momento, entendi todos os relatos que já tinha escutado de várias mulheres e sobre o que é passar por aquilo e ter vergonha de contar.

Posso até me arriscar a dizer que minha meta é que nossos corpos sejam respeitados, que a moda enquanto a roupa que usamos não seja um chamado para a violência ou para ódio coletivo. Somos seres complexos com voz e força para lutarmos por nós e por aquelas que se foram. 

Eu vejo o dia 8 de março como uma das muitas oportunidades que temos o ano inteiro de falar quem somos e contar nossas histórias. É por isso que na busca por esse acolhimento e representatividade, liderança e projeto, eu, Mauroá, gostaria de apresentar o coletivo Preta Chic, que nasceu na garagem de uma casa localizada na periferia de Fortaleza (CE), liderada por mulheres trans e pessoas não binárias.

A Preta Chic tem a proposta de ser um salão experimental, logo mais servindo também como local de performance do estilo vogue. Mathilda, Lavínia, Wendy e Luiz Fernando, que compõem hoje o coletivo, se juntaram e formaram uma bag feita de bandanas, bolsa que atualmente mantém o projeto das meninas de pé, além de palestras educacionais.

Aos depoimentos:

Lavínia Vieira ( idealizadora , integrante da preta Chic, empresária, arte-educadora ) 

“Eu vivia da prostituição. Era a única realidade para mim, tive que [fazer] mesmo não me sentido bem. Até que a pandemia chegou e eu tive que buscar outras alternativas. Foi aí que eu encontrei na arte uma fuga dessa realidade. Comecei na área da beleza investindo em cursos, até que eu e Mathilda abrimos um salão experimental na garagem dos pais dela. Lá a gente fez algumas experimentações com arte e dança e foi daí que nasceu a preta Chic. Agora a gente vende nossas bolsas feitas de bandana, um produto nosso, idealizado por nós e confeccionado por nós. É cansativo, dá trabalho, mas também é [uma forma de] dizer para mais trans e travestis que existe outras portas, que elas podem abrir suas marcas e viver de arte ou não também. É das nossas para as nossas, fugindo das estatísticas e realizando sonhos das que vieram antes de mim e muita revolta também porque eu levo comigo não só minha história, meus sonhos, mas também das que vieram antes de mim, a gente leva com a gente não é individual, vem com a gente toda a favela, a galera racializada e nossas ancestrais.” 

Mathilda Rodrigues ( idealizadora , proprietária da preta chic, multiartista ) 

“A preta chic nasceu da necessidade de ter uma renda e fugir do padrão capitalista que a gente trabalha e não somos valorizadas. A gente fez um salão experimental na garagem da casa dos meus pais que durou uns 2 meses e quando a gente resolveu terminar com o salão a gente já tinha ocupado um certo espaço nas redes sociais. Então não paramos e continuamos, entrou o Luiz,  ainda no salão experimental e ele trouxe essa de juntar o salão com a arte e logo depois a preta chic entrou para a moda sustentável em formato de Brechó e com todas essas migrações a gente conhece a Wendy, e a gente [começa a fazer]  cursos e entra nesse mercado da costura. A gente veio da favela, somos um coletivo da favela com uma proposta muito idealizada e original, é sobre uma frase que gosto muito de falar que é ‘não me amo se não me vejo’. Nossos corpos como persona da nossa marca, nós somos a preta chic, somos pretas chiques!”

Luiz Fernando ( idealizador, integrante da preta chic, produtor cultural) 

“Dentro da preta chic eu faço o trabalho de fotógrafo, assessor, produtor, assistência de direção e faço de tudo um pouco. Sou imensamente grato às meninas por ter a oportunidade de estar com elas nesses corres. Quando a gente estava nesse processo de levar a preta chic para outro patamar, a gente fez várias redes de apoio dentro da rede artística de Fortaleza, fizemos várias trabalhos na área de audiovisual, trabalhando na produção de moda e assessoria artística. As meninas sabem mais do que eu como é viver com corpas travestis nessa sociedade e poder estar ocupando esses espaços mostrando quem somos é muito libertário, é gratificante. Hoje eu acredito que estar com a preta chic nesse corre feita 100% de pessoas pretas e majoritariamente por pessoas trans da favela e ver nosso projeto inseridos dentro de equipamentos culturais é a certeza de que estamos no caminho certo.” 

Wendy ( multiartista, idealizadora e integrante da preta chic ) 

“Eu comecei a costurar na pandemia com minha mãem que é costureira. Fiz cursos na área e as meninas me convidaram para fazer parte do coletivo. Lá busquei alternativas e chamei a Mathilda para que a gente produzisse juntas. A bolsa é feita de bandanas e hoje ela se encontra disponível em uma loja que se tornou parceira da gente, eu gosto sempre de pontuar que a primeira porta que se abre para gente é a prostituição, mas eu sempre me senti ligada ao mercado da moda, das artes e da música. Gosto de fazer de tudo um pouco e mostrar para minhas que a gente consegue estar nesses ambientes. Eu jamais imaginei que eu estaria dentro de instituição dando palestra de empreendedorismo e moda periferica, é muito gigante para mim, que sou autodidata e estar vivendo isso é transformador, dá vontade de viver, de fazer história, estar fazendo esse corre sendo nosso, sem patrocínio, sendo da gente mesmo. Eu, Mathilda, Luís e Lavínia estamos ocupando nossos espaços por nós e por mais de nós, estou no corrre, tô viva e forte para enfretar tudo”.

Estamos nessa, hackeando o sistema do nosso jeito, no sentido que habitamos a terra que pisamos, somos mulheres, travestis e trans, somos mulheres que vivemos e lutamos cada uma com uma causa diferente que, quando junta, se torna igual e gigante, se inserindo em locais que dizem que não são nossos e exigindo que nos respeite, que respeite nossas corpas e nossos sentimentos. Meu nome é Mauroá Spieneler, travesti, costureira, colunista, estilista autodidata e multiartista, estou vivendo e ocupando o mesmo espaço que vocês, mulheres vivas.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo