Fashion Revolution

Na era do “Consumir para Ser”, é possível criar crianças anti-consumistas?

Consumo desenfreado, casado com o fast fashion e publicidade em todas as telas se tornam desafios na educação de crianças e adolescentes

Consumo infantil. Créditos: divulgação/Raina Delisle
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Dia das Crianças, Black Friday, férias, Natal. Datas que anunciam o final do ano e para a maioria dos pais acendem uma luzinha extra: a preocupação da educação anti-consumista. O hábito do consumo, unido com as diversas novas coleções semanais do fast fashion e a publicidade das mesmas em todas as telas possíveis mostram como essa educação extrapola as paredes dos lares na era do “consumir para ser”.

O livro “O Cérebro e a Moda”, de Nathalia Anjos, discorre sobre como a moda carrega signos – elementos de expressão que, muitas vezes, passam despercebidos por grande parte das pessoas. Quem veste uma roupa está se vestindo de significados, que são muito apelativos na época da exaltação de telas. “O consumo foi vendido como porta de acesso para a felicidade”, destaca André Carvalhal em seu livro “Moda Com Propósito”, “as pessoas foram estimuladas a comprar mais que o necessário. Então elas compraram, compraram e compraram, mas continuam infelizes”.

Ana Claudia Sampaio, em sua tese “Vestuário de Moda Infantil na Cidade” explica como a máquina do fast fashion trabalha em relação ao sentimento de sucesso: este, é medido pelas tendências. “É necessário estar sempre em movimento, pois estas ‘marcas de pertença’ se alteram em questão de meses. Estar parado é estar atrasado e isso equivale a uma ‘morte social’”, aponta.

Logo, o movimento de consumo, principalmente em relação às roupas, gera sensação de respeito, dignidade e autoestima – ainda que por um curto tempo. Para entender a fixação desses valores sociais, é também importante olhar para como funciona a criação de hábitos e como a dopamina atinge o cérebro após uma compra.

Ainda segundo Nathalia Anjos, ao explorarmos um novo hábito, acontece uma comunicação entre as partes do cérebro conhecidas como córtex pré-frontal, striatum e mesencéfalo. Este último, responsável pela dopamina, informa se o comportamento está “valendo a pena” ou não, como um sistema de recompensa pelo comportamento. Com a repetição do hábito, a conexão fica mais forte e, também, o fornecimento de dopamina.

Mas esta situação acontece em cérebro formados, o que não é o caso de crianças que, como lembra Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, não são “mini adultos”. “Elas são seres que estão em formação, não podem lidar com estímulos de consumo da mesma forma com que nós adultos lidamos”, afirma.

Um exemplo sobre a formação do cérebro em crianças é uma cena comum para quem já conviveu com uma: a fase de ver repetidamente um filme. E depois passar para outro, e vê-lo, novamente, diversas vezes. “Não é apenas porque é divertido”, aponta Nathalia em seu livro, “mas porque cada vez que assistem é ressaltado um determinado detalhe e aquela história vai ficando cada vez mais bem contada”.

O poder do audiovisual na aprendizagem não pode ser desprezado. Muitas vezes, pela repetição de comportamentos e elementos estéticos, acabamos aprendendo, mesmo sem a intenção. E as crianças aprendem copiando. Primeiro os pais, ao aprender a andar, comer, executar atividades como mexer no celular. Depois no convívio na escola, onde já existe um espaço para se diferenciar por meio de vestimentas e acessórios.

Nos anos entre infância e adolescência, o desejo de expressar sua personalidade se intensifica e, com ele, o desejo do ter. A pesquisa “(In)Sustentabilidade Na Moda e Comportamento do Consumidor Infantil” destaca que “é por meio do consumo que a criança busca um espaço mais autônomo” e “desde cedo que a criança aprende o papel do consumidor”.

O artigo ressalta que crianças se tornam consumidores independentes a partir dos quatro anos, sendo que, desde os dois, já aprendem a fazer pedidos – estimuladas, principalmente, pelas propagandas. Giovanna Nader, consultora de moda sustentável, relembra o espanto quando a filha, na época com dois anos, aprendeu o significado da palavra comprar. “É difícil porque elas são expostas (ao consumo) a todo momento”, reflete, “desde então eu tenho falado ‘filha, a gente tá precisando, então vamos passar pra comprar’”.

Maria aponta os principais prejuízos emocionais para crianças expostas à publicidade infantil: distanciamento em relação à natureza; diminuição da presença de brincadeiras livres, que estimulam a criatividade; adultização; encorajamento de uma perspectiva egoísta, enfraquecimento de valores culturais e aumento de distúrbios alimentares.

Existem várias normas que buscam proteger crianças e adolescentes da publicidade infantil. Maria aponta que o problema não é a propaganda em si, mas sim quando ela é direcionada à criança. Ela cita como mecanismos de proteção ao público infantil o artigo 227 da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor, a resolução 163 do Conanda e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. “O judiciário também tem ampliado o entendimento de que a publicidade quando o direcionando esse público é abusiva e ilegal, como um caso que aconteceu na Bahia, que proíbe propagandas de produtos infantis dentro de escolas”, relata.

Alternativas ao Consumo

Tendo em vista que a criação anti-consumismo encontra diversas barreiras para além do lar, Maria salienta que as crianças e adolescentes precisam ser vistos e tratados como prioridade absoluta pelo conjunto da sociedade. “Quando a gente fala de consumismo, essa responsabilidade tem que ser compartilhada pelas empresas, pelo mercado anunciante, pelo estado, família, escola”, exemplifica.

Dentro de casa, Giovanna busca educar as duas filhas, ainda na primeira infância, com o auxílio do lúdico. “Por exemplo, ganhar roupa da prima é um momento que, desde pequenininha, a Marieta tem esse momento, que é tido como muito divertido. Essa é minha preocupação, fazer essa conscientização divertida, para não causar uma ansiedade”, relata. Maria também aponta a opção de instalar bloqueadores de publicidade nos sites que as crianças acessam e, claro, o diálogo. “O diálogo é o maior ponto de apoio das famílias, que podem explicar fazendo ajustes ao momento de desenvolvimento daquela criança”, afirma.

Enquanto o mercado de roupas infantil apresenta estimativa de volume de produção de 1,2 peças para 2023 (23% da produção total de vestuário), Giovanna enfatiza que não existe nada que faça mais sentido do que não comprar uma roupa nova para uma criança. “Ela vai usar essa roupa no máximo por um ano”, explica, dando como alternativa o sistema de trocas de roupa e brechós.

Fazer parte de grupos de troca, doação, da escola, do bairro. “Eu acho que cabe a nós que temos essa conscientização procurar essas bolhas, porque elas existem e estão cada vez maiores”. Giovanna exemplifica a percepção desse hábito com o Projeto Gaveta, seu projeto de troca de roupas. “São novas maneiras de se consumir moda, novos costumes e quem tá propondo esses movimentos tem que dar uma ajudinha para facilitar as pessoas que o aderem, até essa onda pegar. Exige um esforço, pequeno ou grande, mas existe. Até que ele comece a ficar fácil na sua vida”, sintetiza.

A presença dos pais no dia a dia da criança também é, claro, fator fundamental. Mas sabemos que esse comprometimento passa por outras esferas, como a classe social, condições trabalhistas e de urbanização. “A presença é melhor do que o presente. Muitas vezes as famílias sabem disso, mas não tem como garantir essa presença de toda forma”, afirma Maria.

Construir uma educação anti-consumista passa por questões profundas da sociedade que não podem ser abarcadas em um pequeno espaço como este, mas é de suma importância que elas sejam postas em observação, destacando a fatia de responsabilidade que cabe a cada um. Para que, assim, possamos todos nos esclarecer para construir uma sociedade menos doente, menos ansiosa, e mais presente e consciente de si.

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