Fashion Revolution

Lixo têxtil, uma nova forma de colonização através da poluição

Apesar do seu rótulo ecológico, a moda de segunda mão ainda contribui para a superprodução e o seu subsequente desperdício

Despejo de roupas no deserto do Atacama. Foto: divulgação/greenpeace
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Pense no período que os países do Sul Global serviam aos do Norte com suas especiarias: as rotas marítimas levavam café, açúcar e chá para os países colonizadores. Agora, invertamos: os colonizadores enviam novos produtos pelas mesmas rotas, mas dessa vez, trata-se do seu lixo têxtil. É isso que se trata o “Colonialismo de Resíduos”, termo cunhado em 1989 para se referir à dominação de um grupo de pessoas na sua terra natal por outro grupo através de resíduos e poluição.

Você talvez já tenha visto casos clássicos dessa prática: o Mercado Kantamanto, em Acra, capital do Gana, que recebe 15 milhões de peças de roupas toda semana, e o lixão de roupas que pode ser visto do espaço, no deserto do Atacama, no Chile.

Vender roupa ao invés de jogá-la em aterros, lixões e no mar é uma solução que agrada tanto marcas quanto consumidores – e é esse sentimento que movimenta dezenas de bilhões de dólares por ano

Muito se fala sobre a poluição da indústria da moda, responsável por cerca de 10% das emissões mundiais de gases do efeito estufa, mas pouca atenção é dada ao mercado de segunda mão, que conquista cada vez mais adeptos da sustentabilidade e que, às vezes, não tem nada de sustentável.

Os Millennials e a geração Z são os principais consumidores de roupas de segunda mão. O aplicativo de revenda Depop, relata que 90% dos seus usuários ativos são menores de 26 anos, e a hashtag “vintage” sobre 28 bilhões de visualizações no TikTok.

Uma matéria do The Guardian classifica o mercado como “barato, legal e gentil com a natureza”. Vender roupa ao invés de jogá-la em aterros, lixões e no mar é uma solução que agrada tanto marcas quanto consumidores – e é esse sentimento que movimenta dezenas de bilhões de dólares por ano.

O Statista aponta que o mercado de vestuário de segunda mão faturou US$ 138 bilhões em 2021 e deve fechar 2023 com US$ 211 bilhões. Em 2027, o valor deve ser de US$ 351 bilhões e os Estados Unidos devem levar US$ 70 bilhões dessa fatia. Dado os grandes números, é possível deduzir que este mercado ainda ignora um grande problema da indústria da moda: a superprodução.

Os Estados Unidos é, aliás, um dos grandes “colonos de resíduos”, exportando toneladas de roupas para países como Chile, Gana e Quênia e Nigéria. A América Latina e Caribe recebem 16% do total de resíduos têxteis de países como Estados Unidos, China e União Europeia. Segundo a UNECE (Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa), dados sugerem que “alguns países atuam como centros de importação e exportação”.

Impactos no Sul Global

O Chile é o quarto maior importador de roupas de segunda mão no mundo – e o primeiro da América Latina. Beatriz O’Brien, Coordenadora do Fashion Revolution Chile, conta que essa tendência começou na década de 1970 com uma mudança no modelo econômico, “de uma economia que protegia e promovia a indústria nacional para uma economia de mercado livre”.

Em 2021, as importações atingiram cerca de 126 bilhões de toneladas e mais da metade delas terminaram no norte do deserto do Atacama. A maioria destas peças são de baixa qualidade, feitas de fibras sintéticas, como poliéster, de difícil decomposição.

Além de não serem vendidas, elas são descartadas em um ambiente sem nenhum controle ambiental – ou por parte do Estado -, se decompondo por cerca de 200 anos, e poluindo ar, água e terra nesse processo.

Beatriz relembra que, por serem roupas sintéticas, elas não só liberam gases do efeito estufa, mas também microplásticos, que acabam no fluxo de água e nos oceanos. “Os microplásticos entram no corpo humano através do ar, água e dos alimentos provenientes do oceano”, destaca. A população local, em Alto Hospicio, também sofre com queimadas clandestinas dessas roupas. Em 2022, cerca de 100 mil toneladas de roupas foram queimadas e o fogo durou cerca de 15 dias.

A população local é extremamente vulnerável. “Possuem baixa renda, com alto índice de ocupação informal, assentamentos e habitação informal que são compostos, em parte, por famílias migrantes”, relata Beatriz. Ainda não há estudos sobre os impactos socioambientais do lixo têxtil na região, mas o Fashion Revolution Chile, junto da UNECE e ONU-CEPAL, estão realizando um estudo sobre comércio, importação e descarte de roupas de segunda mão na América Latina, especialmente no país. Segundo Beatriz, o documento deve ser publicado em outubro.

O mapeamento dos impactos e principais atores e a criação de leis é essencial para o começo do fim do colonialismo de resíduos. Ações das próprias empresas, de organizações sociais e sociedade civil não são suficientes para conter o montante de lixo enviado para os países do Sul Global. É o que defende a organização The Or Foundation, que atua no Mercado Kantamanto, em Gana.

Em uma publicação em rede social, o grupo apontou falhas no programa de reciclagem da H&M, no qual a empresa recebe roupas usadas dos clientes em troca de descontos e diz reciclar as peças. “Já falamos há muito tempo sobre como a maior parte das roupas depositadas nessas lixeiras não é reciclada, mas sim vendida no mercado global, terminando em comunidades como Kantamanto, onde 40% do fardo sai do mercado como lixo, indo para o mar ou queimado em lixões informais”, denuncia o comunicado.

Em ação semanal, voluntários se reúnem para limpeza de praias e fazem um ranking de marcas com as etiquetas visíveis. Marcas como Adidas, Nike, H&M, Carter’s, Target e Gap aparecem com frequência.

O cenário de toneladas de roupas de baixa qualidade que são descartadas aos montes sem nenhuma estrutura e que resultam em contaminação ambiental e queimadas regulares e clandestinas é um padrão também visto no Quênia. Um relatório estima que até 50% dos fardos enviados ao país são inadequados. Documento também aponta que “maior parte disso acaba triturada em trapos e, por fim, queimada ou depositada em aterros”.

Mudança estrutural

Para a transformação de um mercado global com cadeia de valor linear para circular, fica claro a necessidade de mudanças, como a criação de leis que responsabilizem, em partes, os importadores e exportadores.

No Chile, apesar do país possuir a lei de Responsabilidade Estendida do Produtor (REP) – que estabelece obrigações de reciclagem de produtos para empresas -, os têxteis ainda são ignorados. Em 2021, a ministra do Meio Ambiente anunciou a entrada da indústria têxtil na lei, mas nenhuma movimentação foi feita desde então.

O que surgiu como forma de mitigação, por hora, são iniciativas como a Ecofibra Chile, uma empresa que reaproveita os resíduos têxteis para fazer painéis de isolamento térmico utilizados em construção, mineração e outras indústrias. Ainda sim, diante de toneladas e mais toneladas, é uma ação de enxugar gelo.

Como a The Or Foundation aponta, os 30 mil empresários de Kantamanto ganharam destruição estrutural, financeira e humana trazida pelos têxteis vindos do Norte Global. “As pressões do desperdício criadas pelo consumo excessivo e pela terceirização imprudente para comunidades como Kantamanto são totalmente evitáveis, mas isso significa uma mudança como o Norte Global gere seus resíduos – não como um problema de outra pessoa, mas algo a ser tratado de forma justa para todos os envolvidos”, garante.

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