Diálogos da Fé

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Pedofilia e igrejas evangélicas: precisamos romper esse silêncio

A falta de orientação às famílias, a demonização da educação sexual oferecida às crianças e a confiança total nos líderes religiosos expõem muitas crianças a abusos

Foto: Pexels/Creative Commons/Pixabay
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O mês de setembro é um mês de luta pela descriminalização e legalização do aborto na América Latina. Esse debate público é urgente: mulheres, meninas e demais pessoas que gestam, morrem todos os anos por procedimentos inseguros. Além da falta de acesso à informação, a métodos contraceptivos e a uma rede de saúde preparada para dar atendimento integral, temos uma grande inimigo a combater: o terrorismo moral sobre o tema.

Neste mês, contudo, decidi escrever sobre um grave problema que não é debatido com a devida seriedade: a pedofilia. Acredito que o mês de setembro é adequado para esse debate, justamente por ter relação direta com educação sexual e de gênero. Vivemos nos últimos quatro anos uma campanha contínua contra a educação sexual nas escolas. Iniciativas que defendiam abstinência como política pública de educação sexual e a fatídica cena em que o ex-presidente Jair Bolsonaro sugere que os pais rasguem páginas da Caderneta de Saúde do Adolescente, foram mais comuns do que nunca nas redes sociais. 

Sob a máxima “quem ensina sobre sexualidade é papai e mamãe”, a proteção de nossas crianças e adolescentes está na berlinda. Não é incomum figuras como Magno Malta e Damares Alves se pronunciarem na defesa de crianças do abuso sexual – mas, na prática, o que promovem é a desproteção da infância. Damares chegou ao absurdo de dizer que as meninas do Marajó eram abusadas porque não usavam calcinhas.

A mesma Damares Alves apoiou a perseguição contra uma menina capixaba de 10 anos que foi chamada de assassina ao tentar interromper uma gestação fruto de estupro. Outros casos de meninas abusadas que tiveram o direito de interrupção de gestação negados ou protelados, aconteceram nos últimos anos. Como a menina de Santa Catarina e a menina do Piauí. E toda a perseguição à educação e de gênero da escola, que ganhou proporções absurdas com o famigerado Escola sem Partido, é um modo de silenciar medidas efetivas de proteção à criança e ao adolescente.

Nas Igrejas, onde a defesa da família é a tônica, esse assunto quase nunca é falado. Acredita-se que o abusador sempre é um estranho,  mas a realidade mostra o contrário: 85% dos casos de abuso contra crianças e adolescentes são de pessoas próximas e que a família confia: familiares, amigos próximos, líderes religiosos, etc. Nos últimos, houve um movimento grande de denúncia de esquemas de pedofilia na Igreja Católica, mais de 400 casos de abusos na Convenção Batista do Sul, nos EUA também vieram a público. Na França, em Portugal e na Alemanha igrejas também foram alvo de investigações por conta de redes de abusos. 

Não temos muitos dados de abusos contra crianças nas igrejas evangélicas no Brasil, justamente pelo silêncio sobre o tema dentro das próprias igrejas. A falta de orientação às famílias, a demonização da educação sexual oferecida às crianças e a confiança total nos líderes religiosos expõem muitas crianças a abusos. Muitas vezes ameaçadas, essas crianças silenciam – e, quando rompem o silêncio, não raro são desacreditadas ou, ainda, julgadas por  terem sido abusadas. 

O moralismo evangélico, na verdade, ameaça a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam todos os dias. Líderes religiosos não sabem identificar uma criança que pode estar em uma situação de abuso, as famílias não são orientadas a respeito de mudanças de comportamento. E essas mesmas famílias são incentivadas a não aceitarem qualquer orientação sobre o tema dos professores e gestores escolares. 

Essa aversão à educação e autonomia sexual chegou ao absurdo de evangélicos espalharem que a vacina de prevenção ao HPV incentivaria as crianças a fazerem sexo,  levandor uma série de mães e pais a não vacinarem seus filhos e filhas.  Essas mesmas mães que acreditam que privar seus filhos e filhas de educação sexual seja a melhor forma de protegê-los, são as mesmas que ficam arrasadas quando veem suas filhas e filhos vítimas de abusos. 

Em meus anos de militância no meio evangélico, já pude acolher muitas vítimas de pedofilia nas igrejas, vítimas de líderes religiosos, mas também de membros da comunidade de fé. E eu acredito que é necessário entender que a luta de mulheres pela legalização do aborto também é a luta em defesa das meninas e crianças. A legalização do aborto é uma luta justa por educação sexual para não engravidar, acesso a contraceptivos para não engravidar e ao aborto raro e seguro, quando for necessário.

Fico enraivecida de ver que as pessoas que dizem ser contra o aborto, em defesa da família, são as mesmas que espalham fake news a respeito da educação sexual. E vemos meninas sendo violadas desde pequenas, ao não serem instruídas a respeito de seus corpos; na adolescência ao não terem acesso a informação adequada de sexo seguro e na vida adulta quando seguem sendo julgadas por suas sexualidades.

A educação sexual  é a maior ferramenta para combater a violência sexual e de gênero. E justamente aqueles que dizem proteger as crianças e as famílias, militam contra esse direito. É necessário falar sobre o tema dentro das igrejas, nas escolas e nas Unidades Básicas de Saúde. É necessário romper o tabu da sexualidade para que possamos educar jovens responsáveis com seus corpos e com os corpos das outras pessoas. É necessário falar sobre  tema para que as vítimas de pedofilia em qualquer ambiente, e sobretudo nos embientes religiosos onde o moralismo impera, possam revelar suas histórias e que os abusadores possam ser responsabilizados. O silêncio sobre este tema apenas fortalece os abusadores, que se apoiam no silenciamento do tema para continuarem abusando de crianças e adolescentes. 

Basta de silêncio! Basta de moralidades sobre a autonomia dos corpos das mulheres! Basta de falsos moralismos! A verdadeira proteção da infância é a construção de um país onde as pessoas possam exercer sua sexualidade com liberdade e respeito, e que abusadores não possam multiplicar-se à sombra do silêncio. 

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