Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Dino mostra sintonia com pautas evangélicas. Por que, então, os senadores evangélicos o rejeitam?

Esta oposição reflete uma dinâmica onde as identidades partidárias muitas vezes se sobrepõem às crenças religiosas, escreve o jornalista Liniker Xavier

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
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A indicação de Flávio Dino ao Supremo Tribunal Federal (STF) é o mais recente campo de batalha desenhado pelas lideranças evangélicas no Congresso Federal e nos púlpitos das igrejas. Em uma manobra para controlar a narrativa, estes evangélicos lançam-se em uma estratégia já conhecida de demonização da esquerda, marcando a política como terreno de combate espiritual. Neste contexto, elementos cotidianos são reinterpretados como símbolos de uma luta ideológica maior, transformando a esfera pública em palco de disputas simbólicas. Tudo o que desafia as crenças e interesses desse grupo é prontamente estigmatizado como “comunismo”, etiqueta aplicada com uma liberalidade quase caricata. 

Os aspectos do dia a dia, desde cores até eventos culturais, são imbuídos de significados ideológicos profundos, frequentemente interpretados através de uma lente de desconfiança e confronto. A cor vermelha, por exemplo, comumente associada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao comunismo, é frequentemente vista com desconfiança, refletindo uma profunda divisão social onde a política e a religião se entrelaçam de maneira complexa e, por vezes, conflituosa. Não seria de ser admirar se a paranoia chegasse a pontos insólitos: o Papai Noel pode ser visto como símbolo subversivo em seu traje vermelho e, até uma simples fatia de bolo Red Velvet poderia ser analisada sob suspeitas ideológicas, transformando o cotidiano em absurdo, indicativo preocupante da atual dinâmica política no Brasil.

A abordagem beira o surreal e reflete uma realidade onde a política é menos sobre políticas públicas e mais sobre o controle da percepção e da moralidade, território onde a lógica é frequentemente ofuscada pela fervorosa luta ideológica. Há uma crescente instrumentalização da fé em prol de agendas políticas, resultando em um espaço onde o debate público é contaminado por acusações e suspeitas, dificultando o diálogo construtivo e a busca por soluções coletivas para os desafios nacionais. Cenário que revela também a tendência de fragmentação e radicalização que desafia os princípios de coexistência pacífica e respeito mútuo, fundamentais em qualquer democracia. 

A reação à indicação de Dino vai além do debate sobre suas qualificações ou sua jurisprudência. É sobre a política cada vez mais vista não como um campo de decisões pragmáticas, mas como um terreno de batalha ideológica. O processo de “comunistização” não é apenas ferramenta retórica. É um mecanismo para manter a coesão e o controle dentro dessas comunidades religiosas. Ao pintar a esquerda como uma ameaça existencial para o país e para os valores cristãos, líderes evangélicos mobilizam suas bases com uma eficácia que poucas outras estratégias poderiam alcançar. Qualquer proposta ou política progressista pode ser rapidamente recontextualizada como um passo rumo ao comunismo, independentemente de sua verdadeira natureza ou intenção. 

A gênese dessa retórica de forma sistematizada foi observada na década de 1980, durante o processo de redemocratização do Brasil, quando a Assembleia de Deus adotou o lema “irmão vota em irmão”, manobra para fortalecer sua influência política sob o manto de uma identidade religiosa unificada. O lema reforçou a ideia de uma comunidade sitiada, onde as únicas defesas contra as forças externas “comunistas” eram a união e o voto coletivo. A narrativa de conflito ideológico é essencial para a manutenção do poder e influência desses líderes. Ao criar um inimigo comum e externo, eles consolidam seu papel como defensores da fé e da comunidade, mesmo que isso signifique distorcer a realidade política e social do país.

A indicação de Flávio Dino para o STF transcende as discussões tradicionais sobre as pautas de costumes e se enraíza profundamente na batalha ideológica contínua que permeia essas igrejas. Dino, com sua trajetória política e jurídica, surge não como um desafio às normas morais, mas como desafiante à ordem ideológica estabelecida no contexto da polarização entre a esquerda e a direita, particularmente a facção bolsonarista. Ele passa a ser visto como arauto de mudanças que poderiam desafiar o status quo. A resistência à sua indicação, portanto, vai além de objeções a aspectos específicos de sua carreira ou visão política. Ela é emblemática de uma luta maior pelo controle da narrativa política no país. 

Flávio Dino se torna um ponto focal nessa disputa, símbolo da batalha que vai além das fronteiras do STF ou das questões legais que ele enfrentará. Sua presença no Supremo é percebida como um potencial ponto de inflexão, um momento crítico na contínua luta pela definição do futuro ideológico do Brasil. Por isso, apesar de Flávio Dino ser católico e manter uma postura contrária à descriminalização do aborto, pauta de extrema relevância para a comunidade evangélica, sua indicação ao Supremo enfrenta resistência significativa por parte desse mesmo segmento religioso. Há uma complexidade intrínseca na política contemporânea brasileira, onde as alianças e antagonismos transcendem as convicções religiosas ou posições sobre questões específicas de moralidade. 

A oposição a Dino, apesar de sua concordância com os evangélicos em temas-chave, reflete uma dinâmica onde as identidades partidárias muitas vezes se sobrepõem às crenças religiosas. Motivo pelo qual pastores evangélicos, a pretexto de não eleger Haddad, Lula, ou outro presidente da esquerda, optaram por um candidato que afirmou praticar zoofilia na adolescência com galinhas, que preferia ter um filho morto a um filho homossexual, e que meninas são fruto de fraquejadas sexuais, seja lá o que isso quer dizer. Hábitos e opiniões que – ao menos, se imagina – passam à margem da ética evangélica.

Há também uma tentativa de demonstrar força política com vistas a estabelecer que qualquer indicado ao STF ou a outras posições de poder, tenham que considerar e dialogar com os interesses evangélicos. Essa exigência está para além das barreiras da política tradicional, posicionando esses grupos religiosos como atores fundamentais no processo político brasileiro. Buscam não apenas ser ouvidos, mas ser uma força decisiva nas nomeações e decisões políticas. Paralelamente, essa abordagem tenta estabelecer legitimidade, reforçando a capacidade evangélica de influenciar as decisões nas mais altas esferas do governo. Ao se opor à indicação de Dino, mesmo ele partilhando de algumas de suas crenças centrais, a mensagem é a de que a relevância desses religiosos nas instituições não pode ser ignorada.

A manobra revela uma faceta preocupante da dinâmica política brasileira quando o assunto são os parlamentares evangélicos: uma aparente disposição em sacrificar a seriedade e a profundidade do processo democrático em favor de interesses eleitorais e de poder. A nomeação de um ministro ao STF é, sem dúvida, um evento de magnitude constitucional, onde um indivíduo é escolhido para interpretar e salvaguardar a Carta Magna do país de maneira vitalícia. Tal processo exige um escrutínio criterioso e uma análise aprofundada das qualificações e do caráter do indicado. No entanto, observa-se que, ao invés de abordar a sabatina de Dino no Senado com a gravidade e o propósito que a situação exige, segmentos evangélicos parecem estar mais preocupados em utilizar esta oportunidade para fortalecer suas narrativas políticas. Estas narrativas, por sua vez, são estrategicamente desenhadas inclusive para alimentar e garantir apoio às candidaturas de prefeitos e vereadores nas eleições municipais de 2024.

A abordagem representa uma notável falta de compromisso com os interesses maiores do Brasil e, ironicamente, com os próprios valores éticos e morais que esses grupos afirmam defender. A ênfase colocada no jogo político e na consolidação do poder sugere que, para esses líderes, os objetivos eleitorais e a manutenção de sua influência são prioridades acima da integridade do processo de nomeação de um dos cargos mais cruciais na estrutura do Estado brasileiro.

A instrumentalização de um momento tão significativo na história política do país para fins partidários e eleitorais é um reflexo da crescente politização da fé e da religião no Brasil. Este fenômeno, por sua vez, levanta questões sérias sobre o papel das instituições religiosas na esfera pública. Assim, ao colocarem seus interesses políticos acima do dever cívico de assegurar uma análise justa e imparcial de uma indicação ao STF, esses segmentos evangélicos demonstram um comprometimento mais acentuado com o poder do que com o bem-estar e os princípios constitucionais do país. Esta realidade, dura e incontestável, desafia os princípios democráticos e coloca em xeque a própria essência do compromisso desses grupos com o Brasil.

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