Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Ferrovia defendida por ministro de Lula afetará terra de Raoni, estrela da posse do presidente

Pesquisadores da UFMG mostram que a criação de um terminal de cargas da Ferrogrão em Matupá, no Norte do Mato Grosso, pode partir ao meio as terras indígenas do Xingu

(Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)
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Caso insista em construir a Ferrogrão – uma ferrovia de 933 quilômetros de extensão entre Sinop (MT) e Itaituba (PA) – o governo Lula terá que lidar com um enorme constrangimento. Isso porque a obra, voltada para atender os interesses dos plantadores de soja do Mato Grosso, vai prejudicar o lar de uma das estrelas da posse do presidente e maior liderança indígena do Brasil, o cacique do povo Kayapó, Raoni Metukitire, de 93 anos.

Raoni subiu a rampa do Palácio do Planalto de braços dados com Lula. A imagem do cacique e seu indefectível cocar amarelo rodou o mundo e ajudou a emprestar ao governo um aspecto multicultural, muito benéfico para o petista após a hecatombe humana e ambiental patrocinada por seu antecessor.

Contudo, a aliança entre o cacique e o presidente pode ser abalada caso Lula solte o braço de Raoni para dar a mão para os sojeiros. Em declarações recentes, o ministro dos Transportes Renan Filho (MDB-AL) se manifestou pela continuidade do projeto da Ferrogrão.

Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais projeta que a redução no custo de transporte provocado pela ferrovia vai incentivar o aumento da produção agrícola, “motivando em consequência a conversão de áreas aptas para agricultura, quer seja pastagens ou vegetação nativa”.

Em outro estudo, os pesquisadores da UFMG mostram que a criação de um terminal de cargas da Ferrogrão em Matupá, no Norte do Mato Grosso, pode partir ao meio as terras indígenas do Xingu.

É nesse ponto que a Ferrogrão afeta a Terra Indígena Capoto Jarina, lar do cacique Raoni. A rodovia MT-232 atravessa trechos da Capoto Jarina e também do Parque Indígena do Xingu, onde vivem 16 povos indígenas. O terminal de cargas de Matupá seria uma opção para receber a soja plantada ao leste do território de Raoni e do Parque Indígena do Xingu.

O trânsito de caminhões carregados de soja na rodovia que corta as reservas indígenas, além da pressão que a soja vai provocar para converter áreas protegidas pode ter um efeito catastrófico.

“Em suma, o terminal de Matupá tem o potencial de desencadear um processo que resultaria de fato na partição dos blocos contíguos de terras indígenas do Parque do Xingu e TI Capoto Jarina, devido à ocupação de suas terras ao longo da MT-322”, entendem os pesquisadores da UFMG.

Em um dos cenários estudados, a perda de floresta dentro da bacia logística da Ferrogrão no Mato Grosso atingiria 65% até 2035. O efeito disso é também o aumento das emissões de CO2 e redução dos volumes de chuva. O estudo sustenta que qualquer análise de impacto ambiental da Ferrogrão deve considerar toda a zona de influência do empreendimento, e não apenas os 10 km de cada lado da linha, como é praxe.

Tratado como prioritário pelo governo de Jair Bolsonaro, o projeto está paralisado por causa de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que atendeu um pedido de ação direta de inconstitucionalidade do PSOL.

Ao ser questionado pela repórter Natália Portinari, da coluna do Guilherme Amado, o ministro Renan Filho defendeu a Ferrogrão: “A ferrovia conecta a produção de grãos aos portos do Arco Norte, preserva o meio ambiente e reduz custos”. O ministro disse ainda que todo projeto “estruturante é importante para o país”, mas que vai aguardar a decisão do STF.  O julgamento da ação está previsto para 31 de maio.

O ministro afirmou também que vai procurar a ministra do Meio Ambiente Marina Silva para tratar das questões ambientais da obra. Curioso é que Marina Silva nomeou para trabalhar com ela justamente um dos pesquisadores da UFMG que assina um dos estudos sobre o impacto da Ferrogrão, o professor de gestão ambiental, Raoni Rajão, que assumiu a diretoria de Controle de Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente. Mais curioso ainda é que o nome do pesquisador é uma homenagem ao cacique Raoni.

Estive com o cacique Raoni em Peixoto de Azevedo, cidade vizinha a Matupá e sede do Instituto Raoni. Na ocasião, perguntei a ele sobre a obra do Ferrogrão.

A resposta do cacique foi emblemática:

“Vocês homens brancos estão destruindo tudo e eu não estou gostando. Eu não aceito. Não será bom para nós povos indígenas Mẽbêngôkre (Kayapó). Nós sempre defendemos manter a floresta para que ela permita nossa sobrevivência. Essa terra é nossa desde nossos antepassados, onde nossos avós andaram. Tinha mata preservada. E hoje, vocês brancos, estão destruindo tudo. Os animais, os peixes, tudo! Todas as coisas vocês estão matando, e eu não estou gostando. É isso!”.

Foi nessa mesma entrevista que Raoni disse, pela primeira vez, que apoiaria a eleição do presidente Lula. A postura foi motivada, principalmente, pelos atos de Bolsonaro que, para Raoni, queria: “a destruição dos indígenas”.

Passada a eleição, outra liderança indígena que entrevistei nessa viagem já cobra de Lula um posicionamento. “É inquietante que o presidente Lula não se posicione abertamente contra um projeto até outro dia defendido por diversos escalões do governo de Jair Bolsonaro, inclusive pelo próprio. E que membros da atual gestão deem declarações públicas sobre o interesse em retomar a Ferrogrão”, escreveu em artigo publicado no jornal O Globo o líder Kayapó, Doto Takak-Ire, eleito recentemente presidente do Instituto Kabu, sediado em Novo Progresso, no sudoeste do Pará.

A ferrovia do genocídio indígena é o título do artigo escrito por Doto, que afirma que a construção poderá representar: “Gravíssima catástrofe humanitária e ambiental, estimulando conflitos fundiários e aumentando a especulação imobiliária, o desmatamento ilegal e a grilagem.

As entrevistas com Raoni e Doto podem ser vistas no webdoc que publicamos pela Repórter Brasil dias antes da última eleição e que trata, justamente, dos impactos que grandes obras provocam na Amazônia mesmo antes de serem efetivadas.

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