Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

A rodovia que divide a Amazônia

A BR-319 é um campo de batalha entre interesses políticos, econômicos e ambientais, com impactos profundos na maior floresta tropical do mundo

Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil
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A Amazônia está no centro de uma controvérsia que combina estiagem severa, pressões políticas e a disputa em torno da reconstrução da BR-319, uma rodovia de 885 quilômetros que liga Manaus a Porto Velho e é o único acesso rodoviário da capital do Amazonas com o restante do País. No entanto, o traçado afeta a região entre os rios Purus e Madeira, um dos blocos de floresta mais preservados do País, e ameaça 69 terras indígenas, além de impactar 41 Unidades de Conservação, segundo levantamento do Observatório da BR-319.

A seca no Amazonas intensificou as pressões pela obra, como mostrado em uma reportagem na edição impressa de CartaCapital nesta semana. Com o baixo volume dos rios, o transporte fluvial é comprometido, e o lobby para o asfaltamento se intensifica, com políticos de diversos matizes cobrando o governo federal e ecoando, é claro, os desejos de empresários da Zona Franca de Manaus, que querem escoar sua produção pela via terrestre.

A licença prévia para reconstrução foi emitida pelo Ibama no governo Bolsonaro, um defensor explícito da obra, que sempre ignorou os riscos ambientais. Já o presidente Lula é contraditório na questão. Diz que almeja o desmatamento zero, mas deu sinais na campanha de que vai levar a obra adiante.

A contradição persiste no governo. A ministra Marina Silva dá alertas constantes sobre os riscos ambientais da obra, assim como seu aliado, o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. Já o ministro dos Transportes, Renan Filho, disse querer usar o dinheiro do Fundo Amazônia para concluir a obra, que, em tese, deveria ser um recurso usado para preservar a floresta.

Convido o leitor a percorrer comigo um trecho da rodovia. Fiz o trajeto há dois anos para uma reportagem em vídeo da Repórter Brasil, mostrando como grandes obras são vetores de desmatamento e queimadas.

Um distrito da cidade de Humaitá, no Sul do Amazonas, nas margens da rodovia tem um nome simbólico: Realidade. “A diversão aqui é fugir do Ibama”, responde Clemilson Legora, ao ser perguntado sobre o lugarejo.

Ao ouvir a frase soou-me como um: “bem-vindo à realidade”.

Ele se aproximou da equipe de reportagem ao ver o drone sobrevoando para fazer imagens das imensas áreas queimadas e desmatadas que circundam o local. Sentado em uma motocicleta sem placa ele disse, em tom jocoso, que também precisa de um drone, pois com o equipamento conseguiria ver de longe a evolução do fogo que coloca para derrubar a mata.

Legora é capixaba, viveu por muitos anos em Buritis, em Rondônia, mas seguiu mais para o norte em busca de terras mais baratas. Pagou R$ 250 por hectare nas proximidades de Realidade. Valor irrisório se comparado com o preço de um hectare em São Paulo, que pode chegar a 40 mil, ou seja, 160 vezes superior, segundo o Instituto de Economia Agrícola (IEA).

“Aqui é a terra mais barata do Brasil”, afirma Claudinei Pereira, que também chega em uma moto sem placa e entra na conversa. Sem meias palavras, Pereira disse que foi para Realidade por causa da exploração da madeira. Legora não conta, mas outro motivo que o levou até o local foi escapar das cobranças de uma multa ambiental de R$ 3 milhões que recebeu do órgão ambiental de Rondônia em 2014.

Outros moradores se aproximam, todos em motocicletas sem placas. Falam frases intimidadoras, emendam com gargalhadas e concordam quando o assunto é criticar o trabalho da mídia. “Não acredito em jornalistas”, disse Legora. O decano deles é Valtair Antônio de Freitas, de 62 anos, que foi em casa buscar uma camisa estampada com a foto do então presidente Jair Bolsonaro para, segundo ele: “ficar mais bonito nas fotos”.

Se a reconstrução da rodovia atiça a expectativa de lucro para os desbravadores, por outro lado, provoca pânico naqueles que lutam pela preservação da floresta e pela defesa dos povos indígenas.

“É preciso discutir a BR-319 com seriedade e honestidade, sem amadorismo e oportunismo. A rodovia é hoje um vetor de destruição da floresta, que facilita atividades que destroem a nossa biodiversidade, os nossos recursos naturais e transforma em cinzas nosso patrimônio natural e o potencial de desenvolvimento da nossa sociobioeconomia”, diz a carta recente do Observatório  da BR-319, formado por organizações da sociedade civil, pesquisadores e associações indígenas. Em um momento em que enfrentamos uma crise climática, abrir uma estrada para o desmatamento na Amazônia não é apenas imprudente, é perigoso.

No intervalo de cinco anos, foram abertos mais de 5 mil quilômetros de ramais – estradas vicinais partindo da rodovia – nas cidades de Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, segundo levantamento do Observatório. Quem olha o mapa vê a formação do movimento conhecido como “espinha de peixe”. São cicatrizes que ferem de morte a floresta.

Além do desmatamento, a pavimentação da BR-319 tem o potencial de causar impactos graves nas comunidades indígenas e ribeirinhas que dependem dessas terras para sobreviver. A falta de consulta adequada a essas populações é uma séria violação dos direitos humanos e dos princípios de preservação ambiental.

Estradas asfaltadas atraem atividades ilegais, como garimpo e exploração madeireira. Além disso, o desmatamento tem um impacto direto na formação dos chamados “rios voadores”, que transportam umidade da Amazônia para outras regiões do Brasil. Comprometer essa função crucial pode agravar as secas em todo o País.

Aqueles que se valem da seca como argumento para pressionar pela reconstrução da BR-319 podem caminhar em círculos e acabam mordendo o próprio rabo, pois é certo que a reconstrução da rodovia vai desmatar e agravar ainda mais a estiagem.

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