Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Ninguém escuta quando pretos pedem socorro 

Pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas no Brasil nos últimos 10 anos; a morte de mãe Bernadete evidencia falhas de todas as instâncias dos poderes

Foto: Reprodução/Redes Sociais
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O assassinato da liderança quilombola Bernadete Pacífico é aterrorizante em muitos aspectos. Um em especial é apavorante. Vinte e três dias antes de ser executada com 12 tiros no rosto, mãe Bernadete olhou nos olhos da presidente do Supremo Tribunal Federal, a ministra Rosa Weber, e disse que estava sofrendo ameaças, sobretudo de fazendeiros. 

“O descaso das autoridades, principalmente quando se trata do povo negro, do povo preto…”, disse mãe Bernadete, fazendo da primeira sentença do apelo uma profecia macabra. 

Assistir a essa cena após ter conhecimento do assassinato é apavorante porque revela a inação das instituições que detém o poder em proteger aqueles que defendem o território brasileiro e o meio ambiente, como fazem os quilombolas, indígenas e tantos outros que são mortos aos montes.  

Apavora porque o apelo foi feito para a ministra Rosa Weber, que segura uma das canetas mais poderosas do Brasil. Weber é a autoridade máxima do judiciário, um dos três poderes que formam a República. No encontro no quilombo, a ministra abraçou a mãe Bernadete e sorriu para o espocar das máquinas fotográficas. “Estou me energizando”, disse a ministra, de terninho azul e com óculos escuros sobre os olhos verdes. 

Entre o apelo de Mãe Bernadete e os tiros que a mataram passaram 23 dias. Nada de efetivo foi feito para protegê-la. Nem pela justiça, nem pelo governo baiano, nem pelo governo federal. Todos falharam. 

“Nós não podemos aceitar o absurdo do que aconteceu com Bernadete. Nós não podemos aceitar essas falhas do Estado brasileiro e eu falo como ministro de Estado”, disse o ministro dos Direitos Humanos, Sílvio de Almeida. 

Nenhum juiz determinou que Bernadete fosse protegida 24h por dia por policiais, nenhum delegado se empenhou em descobrir quem eram os autores das ameaças. Seriam os fazendeiros citados por Mãe Bernadete? Havia relação entre as ameaças e o assassinato de seu filho, morto há seis anos? 

Repito: há seis anos. Michel Temer era o presidente do país, passamos pelo período de trevas do governo Bolsonaro, que tripudiou de quilombolas e voltamos ao governo Lula. Trocam os governos e as mortes não cessam. Na última década, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas, segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Os estados com maior número de assassinatos são a  Bahia de Bernadete como 11 mortes, Maranhão (8) e Pará (4). Há casos registrados em Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais e Alagoas. Fiz uma reportagem sobre mais um episódio de violência no Maranhão, em 2021, e ouvi de um indígena Gamella decepcionado com o governo da época, que era comandado pelo atual ministro da Justiça, Flávio Dino, uma frase marcante. Ele disse que entre os movimentos sociais é comum dizer que a principal função da Secretaria de Direitos Humanos do governo Maranhense é: “levar flores nos enterros das lideranças assassinadas”.

“O caso de Mãe Bernardete se junta a esses assassinatos que estão sem resolução nenhuma. Essa situação é muito grave. Trinta pessoas tiveram as vidas ceifadas ao longo dos anos. Queremos cobrar do Estado brasileiro uma posição. Não dá para o Sistema de Justiça ignorar as violências que acontecem nos territórios quilombolas”, disse o coordenador da Conaq, Biko Rodrigues, em nota divulgada pela coordenação.

Para Rodrigues, a maioria dos assassinatos estão relacionados a pressões sobre os territórios quilombolas. “Existe uma disputa por terra muito ferrenha da qual nós negros e negra, apesar de estarmos nos territórios há mais de 400 anos, foi negado a nós o direito à terra. Isso é fruto do racismo fundiário que existe no país e esse racismo é responsável por deixar pessoas longe da terra”.

Para ser justo, algo sim foi feito na ocasião do encontro entre a ministra Rosa Weber e mãe Bernadete.. A ministra, que também preside o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criou no órgão um Grupo de Trabalho para elaborar estudos e propostas para melhorar a atuação da justiça em ações que envolvem posse, propriedade e titulação dos territórios onde vivem os quilombolas. 

O grupo de trabalho é importante? Sem dúvida. A criação dele respondeu ao apelo de sobrevivência da mãe Bernadete? Não. 

As balas que mataram a mãe Bernadete chegaram antes de todas as indicações dos membros para compor o grupo. A primeira reunião não aconteceu. Depois dos tiros, o primeiro encontro vai ser antecipado, informa o CNJ.

Talvez seja o caso de realizarem a primeira reunião no Cemitério Ordem Terceira de São Francisco, na Baixa de Quintas, em Salvador, onde o corpo de Mãe Bernadete foi enterrado. 

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