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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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Cozinhas Solidárias: Resistência à exploração e símbolo de esperança em tempos de crise

A solidariedade precisa se converter em organização política permanente, em uma rede de resistência periférica

Cozinha solidária do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Sem Teto. Foto: MTST
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As cidades tais como as conhecemos devem desaparecer como resultado de múltiplas crises. Depois de uma crise sanitária sem precedentes, se torna incontestável a crise climática. Em um momento em que crescem os bilionários e a pobreza, a especulação imobiliária e o número de imóveis vagos, a produção de alimentos e a fome, é fundamental reverter o processo catastrófico de produção capitalista das cidades.

Os dados mostram, por exemplo, que no Censo de 2022, o número de domicílios vazios no País é de 11,4 milhões, 87% a mais dos 6,07 milhões do último Censo, de 2010. A dinâmica de produção de moradia e de cidades tem atendido não a concepção de moradia enquanto direito, mas a lógica especulativa.

Por outro lado, num dos países com maior produção de alimentos do mundo, em 2022, o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que no País 33 milhões de pessoas passavam fome. Em 2024, graças ao esforço conjunto, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD-C) aponta que 24,4 milhões de brasileiras e brasileiros saíram da fome.

Nesta conjuntura insustentável, o que vemos em relação à brutal injustiça climática, diariamente impulsionada do Norte para o Sul Global, mas também internamente, nas profundas desigualdades urbanas, no predatório extrativismo urbano, na financeirização da terra, da natureza e das nossas cidades em geral.

Chegamos a uma encruzilhada que nos impõe dizer que, ou pensamos as políticas públicas – das econômicas à urbanas – como políticas ambientais e de reparação histórica, ou a máxima de Albert Camus de que “não estamos em ordem, estamos em fila. Bem alinhados, a fisionomia plácida, maduros para a calamidade” fará cada vez mais sentido.

No entanto, não se pode confundir o cenário de crise profunda em que vivemos com um apocalipse de pleno desamparo e desesperança. Diante do capitalismo de desastre, é fundamental afirmar que esse sistema, que amplifica diversas opressões, não é natural e precisa ser transformado. Os movimentos sociais, linha de frente de resposta às diversas crises e opressões, apontam caminhos.

Invariavelmente, a base dessas respostas são a solidariedade e o enraizamento nos territórios populares. Assim como a pandemia revelou um aumento da nossa capacidade de produzir ações solidárias, é fundamental definir que essa solidariedade será capaz de repensar o sistema como um todo.

Para isso, a solidariedade precisa se converter em organização política permanente, numa rede de resistência periférica. Poucas coisas refletem essa possibilidade de constituição de solidariedade e organização nos territórios junto às populações mais impactadas pela injustiça social e climática do que as Cozinhas Solidárias.

Cozinhas Solidárias, que saíram das ocupações urbanas do Movimento de Trabalhadoras(es) Sem-Teto (MTST), do intercâmbio do movimento com outras organizações populares internacionais e da articulação entre produção camponesa e organização urbana para serem equipamentos populares de enfrentamento da crise vivenciada na pandemia, no ano de 2021.

Do ponto de vista internacional, serviram de base para pensar as cozinhas solidárias, os comedores e merendeiros dos movimentos piqueteiros na Argentina, em especial os da Frente Popular Dario Santillan e as ollas comunitárias da Colômbia, de organizações como o Congreso de los Pueblos.

Incorporadas à Lei do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) como tecnologias sociais, elas foram agregando outras iniciativas, como as hortas comunitárias, a agroecologia urbana e a produção de outras tecnologias ambientais, a fabricação de tijolos ecológicos, cisternas etc. As cozinhas solidárias criam redes de proteção social, agregando também ações de formação política, de acesso à saúde, assistência, educação, trabalho e outros direitos.

De 2021 até agora, já se pode construir uma avaliação do processo que rendeu a construção de criação da 48 cozinhas pelo Brasil, passando pela constituição das cozinhas como política pública e que, no contexto dos eventos climáticos extremos, se torna um dos centro das mobilizações solidárias no Rio Grande do Sul, emerge como faróis de esperança e solidariedade, enfrentando a fome e a vulnerabilidade da população atingida.

Contudo, uma questão se destaca, delineando um contraste entre as ações solidárias do MTST e a lógica do livre mercado, assim como o discurso hegemônico da lei da oferta e da procura. Em períodos de catástrofes, como a que presenciamos no Sul do Brasil, a escassez de produtos essenciais revela a faceta mais impiedosa do capitalismo. Um exemplo marcante ocorreu nos EUA após o furacão Katrina, em 2005, quando sacos de gelo, normalmente vendidos por 2 dólares, eram comercializados em postos de gasolina por até 100 dólares.

Por sua vez, as cozinhas solidárias se baseiam em princípios de justiça social e equidade, pois representam uma forma de resistência e autossuficiência, demonstrando a capacidade das comunidades organizadas de enfrentar desafios e crises sem depender exclusivamente de recursos externos, ou se aproveitando de situações adversas para gerar lucro.  Motivados pelo cuidado ao próximo e pelo senso de comunidade, esses espaços oferecem alimento e acolhimento àqueles que mais precisam, sem qualquer expectativa de retorno financeiro.

A crise no Sul do Brasil nos convida a repensar criticamente os princípios que norteiam nossa sociedade. O livre mercado, por si só, não garante justiça social. É preciso buscar um modelo econômico que priorize o bem-estar coletivo, especialmente em situações de extrema necessidade.

As cozinhas solidárias, com sua postura solidária e focada na comunidade, oferecem um modelo alternativo de organização social, baseado na colaboração, no cuidado e na justiça social. Elas demonstram que, em momentos de crise, a solidariedade e a cooperação podem superar a lógica predatória do mercado, construindo uma sociedade mais justa e resiliente.

Também é importante reforçar o papel estratégico e fundamental das periferias no desenho dessas soluções. Não só porque são as mais impactadas pelos graves impactos das mudanças climáticas e, por isso, qualquer medida de adaptação e prevenção de riscos deve considerar a dívida histórica que se tem com essas populações, mas também porque nesses territórios emergem tecnologias e métodos para reestruturar as formas de vida que nos permitirão o enfrentamento e adaptação à crise climática.

Um processo que se dará, é bem verdade, em diálogo com as forças territoriais que se encontram no campo, na floresta, nos territórios tradicionais quilombolas, pesqueiros, ribeirinhos – entre outros – e que terá também o amparo do diálogo com outros setores da sociedade civil, de organizações sociais comprometidas e também com as universidades e entidades profissionais. Porém, acima de tudo, que haja a responsabilização dos entes públicos com esse desafio conjunto.

Como desafio principal está a implementação do Programa Cozinhas Solidárias como elemento-chave da constituição de políticas públicas de nova geração, que sirvam para consolidar um novo modelo de PPP, não aquelas Parcerias Público Privadas, mas como as Parcerias Público Populares.

Que esse diálogo entre movimentos, organizações populares e Estado avance em uma forma de gestão social que coloque no centro as necessidades sociais e a coletividade, e seja capaz de reverter a lógica privatizante da vida, de serviços e possibilidades, que chegam sob a forma do discurso do empreendedorismo, do conservadorismo e outros elementos de desagregação da vida comunitária.

Que as Cozinhas Solidárias não sejam apenas respostas emergenciais às crises, que sigam alimentando corpos, mas também utopias. É preciso que se diga, os movimentos sociais não perderam a inteligência criativa de repensar sistemas, cabe a todas as pessoas que acreditam em transformação social botar a mão na massa também e fazer isso crescer.

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