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Agências reguladoras: o que eu tenho a ver com isso?

É preciso estabelecer formas de diálogo que rompam com a assimetria do conhecimento, proporcionando uma linguagem acessível aos usuários dos serviços públicos

Imagem: TV Brasil
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Por Ricardo de Sousa Moretti, Edson Aparecido Silva e Amauri Pollachi*

O que o meu bem viver tem a ver com o bom funcionamento de uma agência reguladora? Essa é a questão que movimenta este texto, que procura mostrar como a cada dia, mais e mais, o bom andamento da vida de cada um depende do bom funcionamento de uma agência reguladora, pois são elas que têm a função de regular, controlar e fiscalizar a prestação de serviços públicos.

No Brasil, as primeiras agências reguladoras apareceram na década de 1990, período em que aconteceram muitas privatizações. A Lei Federal nº 13.848, de 25 de junho de 2019, alterou diversas legislações sobre regulação e tratou da gestão, da organização, do processo decisório, da transparência e do controle social dessas agências. A ligação elétrica que fica semanas interrompida, ou a tarifa social, bem mais reduzida, à qual você tem direito mas não consegue ter acesso, têm relação direta com problemas no funcionamento das agências reguladoras.

Há bastante tempo, os serviços de interesse público vêm sendo repassados para a iniciativa privada, por isso algumas concessionárias públicas passaram a ter fortes interesses financeiros, pois abriram seu capital e começaram a ter ações negociadas na Bolsa de Valores, o que as colocou numa dicotomia entre priorizar os interesses dos usuários dos serviços ou seus acionistas.

Em alguns casos, como da Companhia de Saneamento de Minas Gerais, (Copasa), a situação chega a ser caricata: no ano de 2020, o Conselho da Administração da empresa aprovou a distribuição de dividendos no valor de R$ 1,03 bilhão, superando em quase 30% o lucro da companhia naquele ano, que foi de R$ 816 milhões. Esse pagamento poderia se limitar a 25 % do lucro.

Alguns dos serviços de interesse público têm caráter de monopólio natural, ou seja, não há concorrência, e necessariamente um único prestador vai ser aquele a fornecer o serviço aos cidadãos, como é o caso da distribuição de energia elétrica, ou dos serviços de água e esgotamento sanitário. Para esses serviços que têm caráter de monopólio há sérios questionamentos sobre a conveniência de que venham a ser realizados por empresas privadas, face aos riscos envolvidos. Considera-se que a privatização pode ser uma espécie de armadilha, pois cada consumidor fica refém do serviço prestado por uma única fornecedora, sobre a qual nem sempre é eficiente o controle público através das agências reguladoras, sem contar que sempre há o risco de “captura” do regulador pelo prestador dos serviços.

Neste cenário de serviços de interesse público privatizados em que o bom resultado financeiro é a tônica principal, a boa qualidade do contrato e sua fiscalização são fundamentais, pois é isso que vai determinar os padrões de qualidade do serviço a ser prestado. Por isso, cresce a importância da agência reguladora, que vai verificar se o contrato de concessão está sendo efetivamente cumprido, vai fiscalizar o atendimento dos padrões de qualidade, vai determinar os reajustes das tarifas e vai tomar as primeiras providências nos casos de flagrante descumprimento contratual. Contudo, em certas circunstâncias, a agência reguladora tem dificuldades para exercer um papel efetivamente independente e a favor do poder concedente.

Tome-se como exemplo o caso da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), que atua como agência de regulação e fiscalização da prestação de serviços de água e esgotos em 343 dos 375 municípios operados pela Sabesp. Por ser uma entidade subordinada ao governo estadual, o histórico de atuação da Arsesp tem alinhamento mais identificado a essa instância federativa, pois seus diretores são nomeados pelo governo do estado, que é o acionista majoritário da empresa pública de capital aberto – a própria Sabesp. A participação do poder concedente dos serviços, que são os municípios, se restringe à presença minoritária em seu Conselho de Orientação de Saneamento Básico, sem função deliberativa para incidir sobre a definição de tarifas.

Apesar de o corpo técnico da agência reguladora ser nomeado através de concurso, seu corpo diretivo tem fortes relações com quem os nomeou e teme contrariar os interesses do estado em qualquer decisão. No caso de São Paulo, a Arsesp, sem qualquer justificativa, adiou o cumprimento do acordo tarifário que ela mesmo deliberou em 2021 e que, entre outras medidas de interesse coletivo, daria acesso automático à tarifa social de água e esgotos aos inscritos no CadÚnico. Essa omissão prejudica cerca de 3 milhões de pessoas, mas deixou em melhores condições a prestadora de serviços, na perspectiva de privatização almejada pelo governo do estado, que nomeou a equipe diretiva da agência reguladora.

Pode-se argumentar que, gradativamente, as agências reguladoras irão se aperfeiçoar e cumprir melhor seu papel social. Porém, mesmo em países como a Inglaterra, onde o saneamento foi privatizado em 1988, as agências reguladoras não conseguiram controlar a operação das empresas privadas de saneamento, que resultou em uma verdadeira catástrofe anunciada.

Conforme disse nosso amigo e coordenador de comunicação do ONDAS, Marcos Montenegro, no artigo Na Inglaterra, as cidades atolaram: “Depois de 34 anos, está cada vez mais claro que a regulação não funcionou. A We own it, ONG que tem como lema ‘serviços públicos para as pessoas, não para o lucro’ lista as principais razões para o fracasso da regulação dos serviços de água e esgotos privatizados em 1989:

  • as empresas de água privatizadas não correm o risco de perder os seus monopólios;
  • OFWAT, o regulador, está irremediavelmente capturado;
  • a Agência do Ambiente vem sendo sistematicamente subfinanciada;
  • as multas impostas às empresas de água são relativamente muito pequenas;
  • as companhias de água privadas são concebidas para priorizar o lucro de seus acionistas”.

Mas a ganância das empresas privadas não tem limite e novos passos no sentido da livre operação, ou livre exploração, dos usuários dos serviços públicos são delineados. Mesmo a ação das agências reguladoras, que já poderia ser considerada tímida, está agora sob ameaça do “apetite” dos interesses privados. A figura do auditor independente, com custos anuais altíssimos, vem sendo proposta em novos processos de privatização. Mais um custo a ser transferido para a tarifa. A pergunta que fica é: auditor independente de quem ou do quê? No caso da privatização proposta para o estado de Sergipe, está prevista a contratação de um certificador independente, cuja contratação competirá à agência reguladora, porém com sua remuneração de responsabilidade da futura concessionária privada. Ou seja, o fiscalizado remunerando quem fiscaliza.

No caso de São Paulo, o governo estadual propõe criar as figuras de uma empresa avaliadora, responsável por auditar investimentos e a base de ativos, além de um verificador independente, responsável por auditar indicadores e metas, itens básicos na definição dos reajustes/revisão tarifárias. Absurdamente, esses dois órgãos serão contratados pela Sabesp, que será auditada por um contratado seu, um evidente conflito de interesses. Busca-se com isto retirar poderes da agência reguladora, enfraquecendo-a ainda mais no sentido de resguardar os interesses da população.

No saneamento, a população e o município não devem ficar reféns de situações semelhantes às que ocorrem na distribuição de energia elétrica, em que o ente municipal ou a população não tem qualquer poder para acompanhar ou influenciar a prestação de serviços e os preços praticados. É importante que as agências reguladoras se abram para a participação da sociedade, que é impactada pelas suas ações, decisões ou omissões, seja no que se relaciona à qualidade da prestação dos serviços, seja na definição das tarifas.

É preciso estabelecer formas efetivas de diálogo que rompam com a assimetria do conhecimento, proporcionando uma linguagem acessível àqueles usuários dos serviços públicos. A intensa utilização de meios de comunicação na disseminação e divulgação dos direitos dos cidadãos deve ser perseguida pelos órgãos reguladores.

Acreditamos que não é necessário tecer comentários adicionais sobre o risco dos novos caminhos propostos, que constituem verdadeira ofensa aos direitos dos cidadãos.


*Ricardo de Sousa Moretti
é professor visitante da UnB, do Ondas – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento -, do LabJuta – Laboratório de Justiça Territorial da UFABC e membro da Rede Brcidades

Edson Aparecido Silva é mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC e secretário executivo do Ondas

Amauri Pollachi é mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, conselheiro do ONDAS e  diretor da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp

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