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É urgente que o governo Lula entenda: o Ensino Médio não é uma pauta menor

A displicência do Ministério da Educação pode custar caro a milhões de jovens brasileiros

O ministro da Educação, Camilo Santana. Créditos: Reprodução Facebook
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Na última quarta-feira 13, a Câmara dos Deputados votou e aprovou por ampla maioria (351 votos contra 102) a tramitação em regime de urgência “urgentíssima” do Projeto de Lei n. 5.230/2023, que altera a Lei n. 9.394/1996 para definir diretrizes para a Política Nacional de Ensino Médio.

A votação é uma derrota para o governo Lula, pois após articulação das organizações da sociedade civil e coletivos de professores e pesquisadores ligados ao tema do Ensino Médio, o governo enviou à Câmara, no último dia 12, a Mensagem n. 673, solicitando o cancelamento da tramitação em regime de urgência. Um novo requerimento de urgência “urgentíssima”, contudo, apresentado pelo partido Novo, foi colocado em votação por Arthur Lira e manteve a tramitação acelerada do PL n. 5.230/2023.

O ministro da Educação, Camilo Santana, não participou das negociações que resultaram na orientação favorável à aprovação do requerimento do partido Novo, restando a pergunta: o governo Lula realmente pretendia desacelerar a tramitação e abrir caminho para um debate rigoroso e democrático sobre o tema?

A manutenção do regime de urgência representa uma derrota para estudantes e todas as pessoas comprometidas com a defesa de uma educação pública de qualidade, tendo em vista o rebaixado conteúdo do substitutivo apresentado pelo relator do PL, o deputado Mendonça Filho (União/PE) – responsável pela aprovação do Novo Ensino Médio quando ministro da Educação de Michel Temer.

É preciso traçar uma cronologia dos fatos que levaram à tramitação desnecessariamente açodada de matéria da mais elevada importância para as juventudes, bem como à escolha de um relator que não representa o desejo de mudança da sociedade brasileira que, nos últimos anos, esteve empenhada num amplo movimento pelo #RevogaNEM.

Cronologia

Devido à assunção de um governo mais afeito aos debates democráticos e com bom trânsito junto aos movimentos populares, havia a expectativa de que pudesse ser discutida a revogação integral do Novo Ensino Médio, estabelecido pela Lei n. 13.415/2017, a partir da Medida Provisória n. 746/2016.

O que se viu durante os primeiros meses de 2023 , contudo, foi a inércia do Ministério da Educação. O MEC só veio a se manifestar sobre o tema nos idos de março, quando estudantes e professores tomaram as ruas de várias capitais do País exigindo a revogação da reforma de Michel Temer e de seu então ministro da Educação, Mendonça Filho.

Naquele período, o ministro Camilo Santana declarou que não pretendia revogar o NEM, pois enxergava avanços nele. Na visão do ministro, os equívocos do modelo haviam se dado por falta de diálogo, o que seria corrigido com a publicação da Portaria MEC n. 627/2023 (04 abr. 2023), que suspendeu o cronograma de implementação do NEM. O MEC também estabeleceu um processo de consulta pública sobre o tema, entre março e julho deste ano.

Em que pese o fato de a consulta ter sido lançada em março, foi somente em abril que o MEC iniciou uma série de 12 webinários com a participação de docentes, pesquisadores, representantes de instituições científicas, sindicatos, entidades estudantis e movimentos sociais organizados, que apresentaram dados contundentes sobre o fracasso do NEM.

Um grande número de pesquisas apontou que a implementação do NEM amplificou desigualdades nas redes públicas e estreitou os horizontes do direito à educação das juventudes. Em especial, o modelo de flexibilização curricular baseado em “itinerários formativos” ampliou as assimetrias no acesso ao conhecimento em um país já marcado por imensas desigualdades sociais e escolares.

No mês de maio, os debates se intensificaram e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), em articulação com o MEC, realizou cinco seminários regionais intitulados “Ensino Médio: o que as pesquisas têm a dizer?” como subsídios para a consulta pública. Ao final foi produzido um relatório, entregue ao ministro Camilo em junho de 2023. O relatório aponta que a reforma amplia e produz desigualdades nas redes públicas. Também amplia o hiato entre escolas públicas e privadas, já que estas últimas, na prática, mantiveram em currículos as 13 disciplinas que foram praticamente suprimidas nas redes estaduais.

No dia 17 de maio de 2023, a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados também realizou um Seminário sobre o Novo Ensino Médio, no qual foram apresentados dados que coadunam com os apresentados nos seminários do MEC e da ANPEd. Esses debates foram ainda reiterados em audiências públicas da Comissão de Educação do Senado, que criou uma Subcomissão Temporária para Debater e Avaliar o Ensino Médio no Brasil.

O PL n. 2.601/2023, protocolado em 16 de maio pelo deputado Bacelar (PV-BA), a partir de texto proposto por integrantes deste Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, movimentou o debate na sociedade e no Legislativo para que a proposição recebesse as assinaturas de 15 parlamentares de diferentes partidos (PV, PT, Rede e PSOL).

Na exposição de motivos do PL, o grupo aponta que as investigações científicas concluíram que a inadequação do NEM se evidencia no fato de que:

1) a “liberdade de escolha” do NEM depende mais das condições materiais das redes de ensino do que das aspirações individuais;

2) estudantes de nível socioeconômico mais elevado têm maior “liberdade de escolha” e, portanto, que

3) o NEM aprofunda as desigualdades escolares entre os setores populares e as classes mais privilegiadas.

Apontam ainda que a nova organização curricular reduziu a carga horária das disciplinas que antes compunham a etapa do Ensino Médio e que os professores veem dificultada a garantia de sua jornada de trabalho em uma mesma escola, evidenciando a perda na qualidade das atividades didático-pedagógicas.

Apesar da organização e da pressão da sociedade, a inação do MEC se tornava cada vez mais evidente, expressa na forma de uma posição por “adequações” do NEM e não pela sua revogação.

Isso ficou claro nas declarações de Camilo Santana ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 12 de junho. Ao responder a uma pergunta sobre o NEM, e apesar de citar a necessidade do debate no Legislativo, o ministro ponderou que o Conselho Nacional de Secretários de Educação tinha enviado um ofício pela manutenção do NEM; que era preciso ouvi-lo, pois são os estados os responsáveis pela implementação do NEM. Também afirmou que algumas alterações poderiam ser feitas via edição de normas infralegais, como resoluções do Conselho Nacional de Educação e portarias do MEC.

Em 15 de junho, o MEC lançou a consulta pública online para ouvir estudantes, professores/as e gestores/as sobre a reestruturação do ensino médio. A consulta utilizou a plataforma Participa+Brasil, que obteve 11.024 respostas, e o aplicativo de mensagens WhatsApp, que coletou respostas de 139.159 participantes (102.338 estudantes, 1.075 jovens que não se identificaram como estudantes, 30.274 professores/as e 5.480 gestores/as). Os resultados dessa consulta, concluída em 6 de julho, só foram apresentados pelo ministro da Educação em 7 de agosto.

Em julho, por ocasião do 59º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Brasília, uma carta com reivindicações foi entregue ao presidente Lula. A imediata revogação do NEM, incluída na lista de demandas da entidade, suscitou um aceno positivo por parte do presidente. Os/as participantes do evento também manifestaram seu descontentamento pelo interesse do ministro Camilo Santana de realizar apenas ajustes pontuais no NEM.

Tendo em vista que a consulta pública realizada pelo MEC tinha como objetivo coletar subsídios para orientar decisões acerca da Política Nacional de Ensino Médio, o jornal Folha de S.Paulo teve acesso a uma minuta de PL que teria sido finalizada no final da semana anterior. Já a comunidade educacional, maior interessada no conteúdo da minuta, só tomou conhecimento do texto em 26 de outubro, quando o PL n. 5,230/2023 foi protocolado na Câmara dos Deputados.

Resultados da consulta pública

Apesar das limitações da consulta pública (adequação dos instrumentos de coleta de dados, abrangência etc.), as respostas daqueles que vivem o cotidiano das escolas públicas dissecaram os sérios e inúmeros problemas do NEM. A síntese apresentada pelo MEC indicou que os respondentes, majoritariamente, manifestaram:

  • posições críticas à redução da carga horária da Formação Geral Básica (FGB);
  • a necessidade de uma FGB sólida, sublinhando que a carga horária deveria ser de, no mínimo, 2.400 horas;
  • a necessidade de expansão do ensino em tempo integral;
  • a necessidade de maior clareza e orientações acerca dos itinerários formativos;
  • atenção aos diferentes contextos e preocupação com o aumento das desigualdades;
  • a necessidade de recomposição dos componentes curriculares no ensino médio;
  • preocupação com o impacto das mudanças e a necessidade de orientações específicas para juventudes do campo, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, com deficiência e de baixa renda, de forma a assegurar equidade educacional e inclusão de saberes e práticas ligados a esses públicos;
  • rejeição à oferta do ensino médio na modalidade a distância, apontando possíveis exceções em face de necessidades específicas;
  • a necessidade de corrigir desigualdades e de políticas de investimento para garantir a infraestrutura mínima nas escolas, incluindo recursos pedagógicos e tecnológicos;
  • a necessidade de investimentos na articulação da formação técnica e profissional com o ensino médio;
  • rejeição ao “notório saber” como critério para a alocação de professores/as nas escolas;
  • a necessidade de revogação das atuais diretrizes curriculares para as licenciaturas (Resolução CNE n. 02/2019) e a criação de um programa de formação continuada para professores/as e gestores/as atuantes no ensino médio;
  • preocupação com as dificuldades que impedem os jovens mais pobres de continuar e concluir o ensino médio;
  • a necessidade de apoio federal para a expansão das matrículas e o desafio de elaborar orientações curriculares capazes de associar a expansão da jornada a uma concepção de educação integral;
  • a necessidade de articulação do tempo integral à Educação Profissional e Tecnológica (EPT), evitando a exclusão escolar na oferta da EJA e do ensino médio noturno.

A despeito de ter encerrado a consulta em julho, o ministro Camilo Santana enviou o PL n. 5.230/2023 para o Congresso Nacional somente em 26 de outubro – e, estranhamente, sem nenhuma razão manifesta, solicitando a tramitação da matéria em regime de urgência. A urgência, nesse caso, não faz sentido, uma vez que, com a finalização do ano letivo de 2023, qualquer mudança curricular no ensino médio só seria implementada a partir de 2025.

O regime de urgência limita o necessário debate com a sociedade civil, pois estabelece um prazo exíguo de apenas cinco sessões para a apresentação de emendas ao PL e não prevê qualquer discussão na Comissão de Educação, já que a matéria segue diretamente para votação no plenário da Câmara dos Deputados.

Isso é grave, já que o PL n. 5.230/2023 não tem teor revogatório, mas reformativo do NEM, deixando de corrigir grande parte dos problemas identificados por estudantes, professores/as, gestores/as e pesquisadores/as durante a consulta pública do MEC.

O PL do governo mantém diversos elementos da reforma atual e levou a comunidade educacional comprometida com o direito à educação das juventudes a, mais uma vez, se organizar para articular com parlamentares a apresentação de emendas mitigadoras dos danos. Ao todo foram apresentadas 79 emendas, parte delas destinada a manter ou piorar os efeitos de dispositivos perversos da Lei n. 13.415/2017.

O Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade analisou todas as emendas e produziu um quadro analítico detalhado, entregue aos parlamentares, que apontou quais dessas emendas deveriam ser aprovadas ou rejeitadas.

Outro aspecto revelador da parca importância dada pelo MEC ao PL produzido por sua própria equipe é o fato de não ter articulado a indicação de uma relatoria propensa a, pelo menos, resguardar o núcleo da proposta ministerial. É parte do rito político que o Executivo negocie uma relatoria amigável a seus projetos de interesse e autoria. Não foi o que aconteceu com o PL n. 5.230/2023, cuja relatoria foi atribuída a ninguém menos que o criador do NEM, política pública que o MEC, em tese, desejava corrigir.

Durante todo o processo de tramitação do PL na Câmara dos Deputados, não se teve notícia de movimentos de articulação política por parte do MEC ou mesmo de defesa pública enfática do PL por parte do ministro Camilo Santana, o que deixou o relator à vontade para propor um substitutivo muito pior do que a proposta original e contrário aos anseios de estudantes, professores/as e movimentos educacionais expressos na consulta pública do MEC e em outras manifestações na sociedade.

Sem debate ou negociação, todas as emendas ao projeto que previam algum avanço no substitutivo foram sistematicamente vetadas no relatório final de Mendonça Filho, que acatou apenas as propostas que confluíam para a manutenção dos princípios exarados na reforma do ensino médio do governo Michel Temer.

A negligência do MEC na articulação política com a Câmara dos Deputados pode significar prejuízos incalculáveis para milhões de jovens brasileiros/as, comprometendo diretamente as definições curriculares para o ensino médio e impactando negativamente a qualidade do ensino oferecido aos/às estudantes, especialmente daqueles/as que dependem da educação pública.

É urgente que o governo compreenda que a pauta do Ensino Médio não é de importância menor e exige a ampliação do debate para a busca de melhores caminhos.

Assinam este artigo:

Ana Paula Corti (IFSP | REPU), Andrea Caldas (Setor de Educação/UFPR), Andressa Pellanda (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Ângela Both Chagas (UFRGS), Carlos Artexes Simões (CEFET-RJ), Carlota Boto (FE/USP), Carmen Sylvia Vidigal de Moraes (FE/USP), Catarina de Almeida Santos (FE/UnB), Christian Lindberg (UFS | OBSEFIS), Cleci Körbes (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Cristiano das Neves Bodart (CEDU/UFAL), Daniel Cara (FE/USP | Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Elenira Oliveira Vilela (IFSC | Sinasefe | Intersindical CCT), Elizabeth Bezerra Furtado Bolzoni (UECE), Fernando Cássio (FE/USP | REPU), Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva (IFC), Gaudêncio Frigotto (UERJ), Idevaldo Bodião (Faced/UFC), Jaqueline Moll (Faced/UFRGS), Jean Ordéas (FE/USP), Lucas Barbosa Pelissari (FE/Unicamp), Manoel José Porto Júnior (IFSul | Direção Nacional do Sinasefe), Márcia Aparecida Jacomini (Unifesp | REPU), Maria Ciavatta (UFF), Marise Nogueira Ramos (Fiocruz | UERJ), Mateus Saraiva (Faced/UFRGS), Monica Ribeiro da Silva (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Nilson Cardoso (UECE), Rafaela Reis Azevedo de Oliveira (UFJF | ABECS), Renata Peres Barbosa (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Salomão Barros Ximenes (UFABC | REPU), Sandra Regina de Oliveira Garcia (UEL), Sergio Stoco (Unifesp | Cedes | REPU), Thiago de Jesus Esteves (CEFET-RJ | ABECS) e Viviane Toraci (Fundaj)

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