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Pacto civilizatório

A data de promulgação da Constituição não pode, em hipótese alguma, ser considerada como marco cronológico limitador dos direitos indígenas

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As etnias pressionam o STF para rejeitar a tese do “marco temporal”, ideia tirada da gaveta pela bancada ruralista e posta a tramitar em regime de urgência – Imagem: FPA e Joédson Alves/ABR
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A definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse sobre as áreas de tradicional ocupação indígena é de alta relevância para o nosso pacto social. Referida discussão, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, definirá, em suma, a extensão da tutela constitucional dos povos originários. Com efeito, sob a nomenclatura de “marco temporal”, procura-se sustentar uma tese jurídica – que ora rechaçamos – no sentido de que os povos indígenas possuem o direito possessório apenas sobre as terras que ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição da República.

Essa data não pode, porém, ser considerada como o marco cronológico limitador dos direitos indígenas. Outro aspecto fundamental a ser destacado é que a discussão jurídica não compreende mero direito possessório, mas de direitos fundamentais, direta e imediatamente relacionados à própria organização social, à identidade sociocultural e espiritual dos povos originários. É por essa razão que a Constituição de 1988, valendo-se do termo expressamente adotado por seu texto, “reconheceu” aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como assegurou os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las e protegê-las.

A tutela da posse indígena ganhou, portanto, específico regramento constitucional, sem que, com isso, se desconsidere a tutela jurídica que lhe é muito antecedente. Também por essa razão as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, bem como sua posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes não pode sujeitar-se a limite temporal. O debate possui alto relevo constitucional e particular significado civilizatório.

Rememoremos a gravíssima crise humanitária do povo Yanomâmi. Em janeiro de 2023, data em que o governo federal declarou estado de emergência em saúde pública, o mundo tomou conhecimento de um cenário de degradação humana provocada por escassez de alimentos, vacinas e medicamentos. O cenário não versou apenas sobre uma consequência de um desgoverno de direita cruel e desumano, de uma crise nas políticas públicas para os povos originários desenhada pelo bolsonarismo ou em decorrência de ilegais atividades mineradoras em reservas indígenas. Objetivou-se o extermínio, a evidenciar os grandes interesses econômicos que existem sobre as terras originárias.

É nesse cenário que se espera que o Supremo, como guardião da Constituição, conclua o julgamento rechaçando a tese do marco temporal. O compromisso irrenunciável do Estado brasileiro com os povos originários não pode, em hipótese alguma, ser mitigado pelo pretendido termo inicial, sob pena de vilipendiar a Constituição e os legítimos anseios do nosso pacto civilizatório.

O ministro Edson Fachin, relator do processo em que se discute a questão em debate, proferiu voto no sentido de que a teoria do marco temporal desconsidera a classificação dos direitos indígenas como fundamentais, bem como cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas sequer por emendas à Constituição. Acertadamente, o ministro concluiu que a tese do marco temporal deve ser rejeitada na medida em que a legislação brasileira sobre a tutela da posse indígena estabeleceu, desde 1934, específico regramento constitucional protetivo.

Referido entendimento – no sentido de que o direito à terra pelas comunidades indígenas independe do fato de estarem ocupando a área na data de promulgação da Constituição – foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. Já os ministros Nunes Marques e André Mendonça votaram contra. O julgamento deve ser retomado nos próximos dias.

A relação estabelecida pelos povos originários com a natureza, bem como com a terra, está indissociavelmente atrelada à preservação e desenvolvimento de identidade sociocultural e da espiritualidade. A preservação dos costumes e das tradições requer especial compromisso do Estado brasileiro. Portanto, não deve prevalecer qualquer concepção privatística da posse e da propriedade.

No tocante ao debate relativo à indenização dos ocupantes das terras, como se trata de ocupação evidente abusiva, não há que se cogitar em providências indenizatórias. Deve-se analisar, quando muito, o cabimento de indenizações por benfeitorias. Ademais, isso deve ocorrer em processos apartados e específicos, na medida em que o interesse individual em eventual indenização não deve afetar o interesse nacional na demarcação das terras indígenas. •

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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