Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

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Como garantir o direito a comida saudável e segura

A saída é coletiva e está ao nosso alcance. Precisamos lutar por ela, nas ruas, nas redes e nas urnas

Como garantir o direito a comida saudável e segura
Como garantir o direito a comida saudável e segura
O modelo de desenvolvimento de agricultura no Brasil privilegia o agronegócio com largo uso de agrotóxicos e desprestigia a agricultura familiar e a produção de alimentos saudáveis
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A segurança dos alimentos refere-se à qualidade dos alimentos, ou seja, diz respeito à ingestão segura e adequada de nutrientes, pensada da produção até o consumo.  Desde o campo até a mesa e ao descarte, uma série de condições precisa ser respeitada para que as pessoas tenham acesso seguro aos alimentos.

Uma breve mirada aos alimentos que chegam até nós e considerando as condições de moradia, saneamento e vida da maior parte da população, nos leva a questionar a segurança dos alimentos consumidos no Brasil. Por um lado, o crescimento dos cultivos de monocultura, baseados em sementes transgênicas e no alto consumo de agrotóxicos – muitos deles proibidos em outros países do mundo. Por outro, ressalta-se as condições precárias de conservação e manipulação dos alimentos. A falta de saneamento básico compromete o abastecimento e qualidade da água. O alto preço da energia e do gás de cozinha levou muitas famílias a desligarem geladeiras e eletrodomésticos e cozinharem à base de lenha – ou a comerem alimentos crus ou mal cozidos. Para quem vive nas ruas, a  comida é encontrada nas latas de lixo, com alta probabilidade de contaminação. 

Para o país que saiu do Mapa da Fome da FAO em 2014, o retorno do flagelo da fome é uma grande violência e fonte de angústia e dor coletivas.  

Dados anteriores à pandemia apontam que, no mundo, uma em cada nove pessoas passava fome ou estava em situação de insegurança alimentar. São mais de dois bilhões de pessoas com deficiência de micronutrientes e 690 milhões com má nutrição crônica.  No Brasil, dados recentes indicam que a fome quase dobrou durante a pandemia. Enquanto no fim de 2020, 19,1 milhões de pessoas passavam fome a cada dia, atualmente são 33,1 milhões de pessoas nessa condição, identificada como insegurança alimentar grave. Mais de 125,2 milhões de pessoas vivem em domicílios com algum grau de insegurança alimentar – o que corresponde a 60% de toda nossa população. 

De fato, “não dá pra esconder, não dá pra aceitar”. 

O mais contraditório de tudo isso é que vivemos no país aclamado como “celeiro do mundo”, onde o “agro é tudo”, destacando nas manchetes as safras recordes de alimentos. Por que, então, a conta não fecha? Por que milhões de pessoas passam fome ou correm risco de comer alimentos inseguros, mal conservados e apodrecidos?

E ainda, por que, diante da fome que assola países do sul global, convivemos com uma taxa mundial de desperdício de mais de 30% dos alimentos no caminho que vai do campo à mesa, da produção ao consumo? 

As razões para tamanha calamidade são muitas, são históricas e estruturais. Tem a ver com a matriz de desigualdades que organiza nossa sociedade, hierarquizando seres humanos segundo aspectos de raça, gênero, classe, uso e ocupação das terras (rurais e urbanas), acesso à educação de qualidade. A Lei de Terras do Brasil (de 1850) é anterior à abolição da escravatura. O tempo não curou essa chaga e a desigualdade fundiária segue relevante: as propriedades rurais com mais de 2.5 mil hectares são apenas 0,3% das unidades e ocupam 32,8% das terras rurais. A desigualdade de gênero também se faz sentir, já que apenas 19% das cerca de cinco milhões propriedades rurais brasileiras são comandadas por mulheres. 

A concentração das terras, o avanço da monocultura agrícola e da pecuária sobre a Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia e outros e o próprio funcionamento do chamado sistema agroalimentar hegemônico contribuem para o aumento da fome, do desperdício e da insegurança alimentar. 

Um elemento chave do funcionamento do sistema agroalimentar corresponde às grandes distâncias que separam produtores e consumidores de alimentos. Isto é, a comida viaja milhares de quilômetros no Brasil e até mesmo atravessa oceanos para as gôndolas de grandes supermercados. Quantos intermediários não lucraram com o processamento e o transporte desses alimentos?  

Ora, se já detectamos que as grandes distâncias são um problema, a solução deve estar na promoção de encontros, de trocas, de pontos de contato, ou seja, no encurtamento das distâncias – físicas e cognitivas entre pessoas e seus territórios

Na agenda da comida, isso significa criar e fortalecer feiras e mercados locais, abastecidos pela agricultura familiar e camponesa; retomar e ampliar políticas de compras públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) vinculados à agroecologia; direcionar a pesquisa agropecuária pública para os desafios da agricultura família.

É preciso ainda regulamentar as normas sanitárias da agricultura familiar; incentivar o consumo de alimentos frescos e pouco processados, sobretudo nas periferias urbanas também chamadas de desertos alimentares; e valorizar a recuperação das receitas e histórias de nossa cultura alimentar. 

Já a preservação e o manejo dos alimentos nas casas, lanchonetes e restaurantes requer políticas de distribuição de renda, geração de trabalho decente, programas e ações de moradia e saneamento. A saída é coletiva e está ao nosso alcance. Precisamos lutar por ela, nas ruas, nas redes e nas urnas.

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