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Servidão voluntária

São inegáveis as similitudes entre a política afetiva do fascismo e do bolsonarismo

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Presidente do Sindicato Rural de Rio Verde, Luciano Jayme Guimarães Foto: Reportagem Agência Pública
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Recentemente, nos deparamos com episódios de violência perpetrados por adeptos de Bolsonaro contra simpatizantes de Lula, como o caso de um assassinato a facadas em uma chácara no município de Confresa, em Mato Grosso. Tais ocorrências suscitam argumentações que aproximam o bolsonarismo da ideologia fascista.

No sentido estrito da expressão, essa caracterização é questionável. Torna-se, porém, absolutamente pertinente para quem acredita, como Umberto Eco e Theodor Adorno, que o fascismo, como conceito amplo e não localizado historicamente, é uma ameaça inerente à vida democrática e que pode emergir de várias formas. De qualquer maneira, são inegáveis as similitudes entre a política afetiva do fascismo e do bolsonarismo.

As práticas fascistas furtam-se a um diálogo racional com a realidade, buscando estabelecer um discurso que se fundamenta em uma afetividade primitiva que habita todos nós e certo setor da sociedade, em particular. Nessa ideologia, a relação entre líder e liderado se dá por um mecanismo projetivo, pelo qual o liderado tenta reproduzir o autoritarismo do líder. O filósofo francês Étienne de La Boétie aborda essa questão em seu Discurso da Servidão Voluntária. A adesão do indivíduo ao projeto fascista reflete o desejo de ser um pequeno autoritário no seu ambiente cotidiano.

Embora o bolsonarismo seja composto de segmentos sociais, etnias e regionalidades diferentes, ele é marcadamente uma escolha do sexagenário branco de elite. Esse perfil sinaliza de forma afetiva a sua frustração com o fato de ter de se adaptar a uma sociedade contemporânea em que ele precisa tratar a sua mulher como igual, bem como admitir negros em seu cotidiano sem discriminá-los e aceitar que pessoas LGBTQIA+ manifestem a sua afetividade de forma livre, além de se resignar ao fato de que sua aporofobia, o ódio pela pobreza, não pode ser explicitada em um meio civilizado.

O evidente desconforto desse sexagenário branco com as conquistas instituídas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelas constituições rígidas acaba se espraiando por todo o ambiente social. Cria-se, então, um mecanismo de comunicação entre o líder e seus liderados que nem sequer requer verbalização. Ele se configura pela repetição constante de uma quantidade reduzida de conceitos de pensamento e linguagem vazios de sentido, quase metafísicos. Como escreveu Adorno, a propaganda do fascismo “deve ser orientada psicologicamente e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos”.

Nesses termos, tal mensagem torna-se muitas vezes implícita no gesto, no tom viril, na incisividade, na expressão do ódio pelo tom de voz, pelo olhar, pela postura física, no viés autoritário de se manifestar. Portanto, não há necessariamente por parte do líder uma ordem para que o liderado aja de forma violenta, mas há um estímulo para que ele o faça, sobretudo quando o liderado recebe acolhimento no seu grupo ao praticar a violência.

Muitos dos que agiram violentamente contra a democracia, a Constituição, o Judiciário e contra pessoas identificadas ideologicamente com o polo oposto foram recebidos quase como heróis no ambiente bolsonarista. E, diante dessa receptividade, é secundário especular que o líder eventualmente não incite a violência contra militantes e lideranças contrárias, dado que, na realidade, o que importa é o estímulo político-afetivo que impera nessas relações. No bolsonarismo, ele é evidente.

É interessante observar ainda como alguns líderes políticos não bolsonaristas, em certa medida, validam esse tipo de comportamento e de discurso, ao traduzir os ataques dos adeptos de Bolsonaro a seus adversos como produto de uma polarização. Essa perspectiva serve para o intento de tratar Bolsonaro e Lula como se fossem dois líderes extremistas em ­disputa, o que definitivamente não é verdadeiro. O ex-presidente sempre foi um líder vinculado à democracia, submisso aos princípios constitucionais.

A polarização que há hoje na sociedade é diferente da que ocorria, por exemplo, entre PSDB e PT. Naquele momento histórico, havia discursos ácidos e críticas, mas nunca, no contexto daquelas divergências, a democracia esteve sob ameaça. Não é por acaso que, atualmente, figuras como Lula e Alckmin se reúnem na mesma chapa.

Ao praticar a violência contra o seu adversário, o militante bolsonarista realiza aquilo que afetivamente o líder prega e o seu grupo acolhe. Não se trata de um ato individualizado, mas da bandeira de um projeto autoritário, incivilizado e caótico de se conceber a vida social – uma conduta que deve ser repudiada por todos os democratas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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