Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

O bolsonarismo quer ser parte e todo – e está conseguindo

É essencial que essa manobra tática do bolsonarismo seja desmobilizada. Tivemos quatro anos para isso, e não foi feito.

O presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, durante comemoração da Independência do Brasil em Copacabana, no Rio de Janeiro - Foto: AFP
Apoie Siga-nos no

Este 7 de Setembro mostrou como, independentemente do resultado eleitoral em outubro próximo, o bolsonarismo já consolidou uma importante vitória: a apropriação de símbolos nacionais.

O bolsonarismo é uma parte da sociedade brasileira que pretende se colocar como todo, e ao menos no plano simbólico, tem conseguido. Estas não são dimensões menores da política: na última década, as mídias digitais acirraram uma tendência à centralidade da estética, dos afetos, da moralidade cotidiana, da opinião e da performatividade do discurso na política. Por isso, é essencial que essa manobra tática do bolsonarismo seja desmobilizada. Tivemos quatro anos para isso, e não foi feito.

Desde o movimento pró-impeachment em 2015-16, a “nova” direita já havia realizado essa apropriação da bandeira nacional, das suas cores e da camiseta da seleção canarinho. Tudo o que Bolsonaro precisou fazer foi tomá-la de empréstimo de seus então aliados, junto a outras pautas como a anti-corrupção. Uma vez tornado governo, o bolsonarismo persiste nesse processo, usurpando esses símbolos do restante da população brasileira, inclusive dos ex-bolsonaristas. Este ano, não foi possível a não-bolsonaristas comemorarem nas ruas os duzentos anos da independência sem serem confundidos com apoiadores do presidente.

Bolsonaro sempre se valeu da ambiguidade da linguagem para realizar esse englobamento do todo pela parte. Nos seus chamados para os atos na tevê, ele falou “do nosso Brasil, da nossa bandeira verde amarela”. O “nosso” ali poderia ser lido como um chamado a todos os brasileiros. Mas seus seguidores sem dúvida o associaram apenas aos “cidadãos de bem”, os “verdadeiros” patriotas. Esse apito de cachorro foi confirmado durante os atos, quando o presidente e primeira dama evocaram a luta do “bem contra o mal”, atacaram a esquerda e falaram em “extirpar” esse “tipo de gente”. Reforçou, ainda, um outro movimento discursivo típico do fascismo, e muito presente nas redes bolsonaristas: a desumanização do seu adversário associando-o a um defeito físico que o tornaria monstruoso, menos humano.  Aqueles que simetrizam o bolsonarismo e o lulismo deveriam prestar mais atenção.

Assim, como muitos notaram, o que era para ser uma data única na história do país onde todos os brasileiros celebrariam os duzentos anos da independência, tornou-se um comício eleitoral de um grupo de interesse particular. Até o presidente de Portugal, que se deslocou de tão longe para celebrar a amizade entre os povos das duas nações, foi completamente ignorado pelo presidente e escanteado por Luciano Hang, um empresário que nem cargo eletivo possui.

Além dos símbolos nacionais, há outra representação do “todo” ainda mais poderosa que foi constantemente evocada nos discursos, que é o próprio Deus do Cristianismo. Este Deus não ama a todos igualmente, mas tem preferência especial por aqueles escolhidos, entre os quais, segundo eles, o próprio presidente. A aparente universalidade dos símbolos da nação e de Deus esconde, portanto, um particularismo extremo, que em muitos momentos beira o fascismo. O fascismo histórico realizou o mesmo movimento de englobamento do todo pela parte – algo que deixado a si mesmo, é disfuncional e patológico, pois leva, como no caso de Hitler, Mussolini e muitas seitas, a uma deriva suicidária do próprio grupo.

Finalmente, esse particularismo travestido de universalidade se manifesta também no modo como a campanha do presidente tem tentado acessar o voto feminino, colocando em primeiro plano Michelle Bolsonaro e seu aparente empoderamento feminino. Porém, a mulher conservadora é autônoma até o momento em que discorda do chefe da família. Isso ficou claro no dia anterior, nas ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> class="s1">insinuações que Bolsonaro fez à jornalista Amanda Klein ao ser perguntado sobre a corrupção dos imóveis e rachadinhas. O presidente retrucou questionando a relação dela com o marido, que é bolsonarista. 

Pode-se criticar Gilberto Freyre por muitas coisas, mas ele leu como ninguém a mentalidade da Casa Grande no Brasil. O senhor de engenho é a autoridade última e absoluta sobre seu feudo. Mulher, amantes, filhos, escravos, animais, todos se submetem a ele: até mesmo o padre (Deus) e o cobrador de impostos (Estado). Este é a verdadeira imagem do “todo” no bolsonarismo: uma corrente política particularista que só atribui reconhecimento àqueles dentro do seu próprio grupo, e contanto que os membros se submetam ao líder como autoridade última.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo