Política

assine e leia

Para inglês ver

A embaixadores, Bolsonaro revela o roteiro de seu remake do motim no Capitólio

Para inglês ver
Para inglês ver
Plateia esvaziada. Muitos diplomatas dispensaram a apresentação circense - Imagem: Clauber Cléber Caetano/PR
Apoie Siga-nos no

O roteiro é manjado, mas Jair Bolsonaro fez questão de reunir, na segunda-feira 18, embaixadores de várias partes do mundo para apresentar um brienfing (sic) sobre as “vulnerabilidades” do sistema eleitoral brasileiro. Para quem não é versado no idioma, brienfing, com esta grafia, significa “rezumo”, ou quase isso. E foi exatamente o que o ex-capitão fez ao longo de desvairados 50 minutos de exposição: sintetizou aos diplomatas as principais teorias conspiratórias sobre as urnas eletrônicas que há tempos cultiva para justificar a derrota iminente nas eleições de outubro, como preveem os institutos de pesquisa. Ao término da apresentação no Palácio da Alvorada, o palestrante estremeceu diante do incômodo silêncio da esvaziada plateia. Em socorro, integrantes do governo correram para aplaudir o chefe. Somente então o distinto público entendeu ser o momento das palmas, tímidas e protocolares.

Se antes alguns deles tinham dúvidas sobre a disposição de Bolsonaro de tentar um golpe, tudo restou esclarecido. O ex-capitão e seu gabinete estão mesmo empenhados em fazer um remake cômico do assalto ao Capitólio, a desastrada tentativa de Donald Trump de reverter na marra a derrota sofrida nas eleições dos Estados Unidos. “Cresce o temor de o mundo testemunhar algo similar a milhares de milhas ao Sul, no Brasil”, afirma a revista britânica The Economist em seu podcast. “Muitos diplomatas no evento saíram abalados com a apresentação, inclusive com a proposta de Bolsonaro de que o caminho para garantir eleições seguras seja por meio de mais envolvimento do Exército brasileiro, segundo dois diplomatas presentes que falaram sob anonimato”, noticiou o New York Times.

A amadora apresentação em ­PowerPoint, repleta de fotos do presidente passeando de motocicleta durante o expediente, parecia um compêndio das cascatas que circulam nos grupos da seita bolsonarista no WhatsApp e no Telegram. De acordo com o atual ocupante do Palácio do Planalto, as eleições de 2018 foram fraudadas. Bolsonaro acredita ter sido eleito em primeiro turno e nem passou pela cabeça do iluminado que, se houve trapaça, o pleito deveria ter sido anulado, assim como a sua diplomação.

Os estrangeiros saíram do evento “abalados”, diz o NYT. Deve ter sido difícil conter o riso

Eleito quatro vezes deputado e uma vez presidente pelas mesmas urnas eletrônicas que agora diz não serem confiáveis, o ex-capitão voltou a usar o inquérito da Polícia Federal sobre o ataque hacker ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral, em 2018, para reciclar alegações de fraude. “Segundo o TSE, os hackers ficaram por oito meses dentro do computador do TSE, com código-fonte, senhas. Ficaram muito à vontade”, disse Bolsonaro. “E (a PF) diz, ao longo do inquérito, que eles poderiam alterar o nome de candidatos, tirar voto de um e mandar para o outro.”

Mentira. O hacker teve acesso à rede interna (intranet) da Corte. Pode ter acessado e-mails de funcionários, arquivos salvos nas pastas locais, mas jamais penetrou as urnas. E a razão é simples: elas não têm nenhuma conexão com a internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa na máquina. Além disso, o código-fonte da urna é aberto e auditado por várias entidades, como o Ministério Público, a Polícia Federal, a OAB e os próprios partidos políticos.

Há tempos o TSE desmente as invencionices de Bolsonaro sobre o episódio. Após uma reclamação protocolada pela Rede, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, chegou a intimar o presidente a apresentar provas das alegações de fraude nas eleições. Bolsonaro não apontou uma única. Em vez disso, a Advocacia-Geral da União justificou não ser ilegal “levantar discussões sobre os aspectos que permeiam o sufrágio eleitoral”.

Em sua cruzada contra a Justiça Eleitoral, Bolsonaro conta com o respaldo da ­cúpula das Forças Armadas. Em recente ofício, os militares solicitaram ao TSE todos os arquivos das eleições de 2014 e 2018, justamente os anos colocados sob suspeição pelo presidente. Aos embaixadores queixou-se que as sugestões de aperfeiçoamento do sistema eleitoral serão avaliadas somente após 2022, outra cascata. A Corte acatou dez das 15 propostas apresentadas pelos oficiais e pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, para as eleições de outubro e se dispôs a analisar outras quatro para o próximo ciclo eleitoral (2023-2024). Uma única ideia foi rejeitada: a publicação de um relatório de abstenções e da listagem de eleitores mortos. Para os magistrados, a medida viola a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Suprema letargia. Fux limita-se à nota de repúdio. Aras fecha os olhos outra vez – Imagem: Rosinei Coutinho/STF

É provável que os diplomatas tenham tido dificuldade para conter o riso em outro momento da apresentação. Bolsonaro disse possuir “dezenas e dezenas de vídeos”­ que supostamente mostram a dificuldade de seus eleitores em digitar o seu número nas urnas. “Ou, quando ele apertava o número 1, e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia pra outro candidato”, afirmou o ex-capitão, ao resgatar uma das fake news mais populares – e fartamente desmentidas – de 2018. “Temos quase cem vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi para outra pessoa. Nenhum vídeo falando de outro candidato e por ventura apareceu meu nome.” Por que será?

A patacoada de Bolsonaro é uma reação ao encontro promovido pelo TSE em 31 de maio com 70 diplomatas. Na ocasião, eles assistiram a palestras sobre combate a mentiras e milícias digitais, testaram as urnas eletrônicas, ouviram o presidente, Edson Fachin, e o vice da Corte, Alexandre de Moraes. O maior temor do ex-capitão é de que se confirme a previsão feita por um diplomata brasileiro a ­CartaCapital no início de junho. Se Lula vencer, como indicam as pesquisas, ele receberá ligações e cumprimentos de chefes de Estado tão logo o TSE anuncie o resultado. Seria uma forma de melar o golpe em curso.

Os gestos partiriam, por exemplo, de chefes de Estado como Alberto Fernández, da Argentina, Emmanuel Macron, da França, e Pedro Sánchez, da Espanha, mandatários que o ex-presidente visitou em novembro e dezembro de 2021. Com Trump fora da Casa Branca e respondendo a processo no Congresso dos EUA pelo motim do Capitólio, quem iria apoiar a aventura golpista do ex-capitão?

Um dia após o circo armado para os embaixadores, o presidente Joe Biden mandou um duro recado para Bolsonaro. A embaixada dos EUA em Brasília defendeu a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e disse que ele “serve como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”. Bye-bye, capitão.

“Até quando vão alimentar o crocodilo pensando que serão comidos por último?”, indaga Lenio Streck

O vexame provocou ainda forte reação no mundo jurídico. Especialistas em Direito Eleitoral observam que as insinuações de Bolsonaro sobre a lisura do sistema eleitoral em atos do governo configuram abuso do poder político, que pode levar à cassação de sua chapa. Para diversos constitucionalistas, os constantes ataques ao TSE caracterizam crime de responsabilidade, previsto no artigo 4º da Lei do Impeachment, ao descrever atos que atentem contra o “exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”.

A avaliação é compartilhada por Ciro Gomes, candidato do PDT à Presidência. “Nunca, em toda a história moderna, o presidente de um importante país democrático convocou o corpo diplomático para proferir ameaças contra a democracia e desfilar mentiras, tentando atingir o Poder Judiciário e o sistema eleitoral”, escreveu nas redes sociais. Na terça-feira 19, deputados de oposição pediram ao STF para autorizar uma investigação contra o ex-capitão, em razão da fatídica reunião com os embaixadores estrangeiros.

A iniciativa tem efeito simbólico. A investigação compete ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que sempre se mostrou grato demais a Bolsonaro, responsável por sua nomeação, para levar adiante qualquer inquérito contra ele. Desta vez, no entanto, Aras enfrenta uma insurgência no MPF. Mais de 40 procuradores pediram ao TSE uma investigação dos “ilícitos eleitorais decorrentes de abuso de poder” praticados pelo presidente.

Por meio de nota, o ministro Luiz Fux disse repudiar, “em nome do STF”, a tentativa de “se colocar em xeque mediante a comunidade internacional o processo eleitoral e as urnas eletrônicas”. Mas a bronca do magistrado tem pouco ou nenhum efeito sobre o ex-capitão. Como observa o jurista Lenio Streck, há tempos a PGR, o Parlamento, o Judiciário e o próprio povo brasileiro têm tolerado os esbirros autoritários de Bolsonaro sem qualquer reação efetiva. “Até quando vão alimentar o crocodilo pensando que serão comidos por último?” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Para inglês ver”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo