Sustentabilidade

2023 será finalmente o ano das florestas?

O Brasil pode liderar uma agenda de mudança global com a autoridade de quem protege sua megabiodiversidade

Duas imagens de sobrevôo da Floresta Amazônica preservada e desmatada - Fotos: iStock
Apoie Siga-nos no

Após o longo período no qual as urgências econômicas e sanitárias decorrentes da pandemia de Covid-19 relegaram a um segundo plano as políticas ambientais globais, 2023 é aguardado com ansiedade por aqueles que atuam em defesa das florestas no Brasil e no mundo. Realizadas nos últimos meses de 2022, as conferências da ONU sobre Mudanças Climáticas e Diversidade Biológica apontaram para a retomada de duas agendas que têm na preservação das áreas ainda intocadas do planeta sua pedra fundamental.

“O ano de 2023 pode ser o marco histórico da volta da comunidade internacional a um plano de preservação e restauração florestal”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao final da 15ª Conferência sobre Biodiversidade (COP-15), encerrada em 19 de dezembro na cidade canadense de Montreal. No mesmo evento, mas em outro tom, o secretário-geral da ONU, António Guterres, fez um alerta: “Estamos tratando a natureza como uma latrina. E, com isso, rumamos ao suicídio porque a perda de biodiversidade tem um elevado custo humano”.

Inicialmente marcada para 2020 em Kunming, na China, a COP-15 somente foi realizada após um hiato de quatro anos desde a conferência global anterior sobre biodiversidade. O encontro assumiu como tarefa primordial “proteger as terras e os oceanos e evitar a extinção em massa de espécies” e deixou como saldo a aprovação do Acordo de Kunming-Montreal, que leva o nome das duas cidades e tem seus pilares em dois compromissos.

O primeiro é fazer com que até 2030 um terço do planeta esteja incluído em áreas protegidas, aumentando um percentual que hoje, ao menos no papel, é de 17% em zonas terrestres e 10% em zonas marinhas. No que foi definido como um “plano de emergência”, os signatários do acordo se comprometeram a “conservar e gerir de forma eficaz, através de um sistema de áreas protegidas, 30% de suas terras e águas continentais e costeiras” até o fim da década.

O segundo pilar para a proteção da diversidade biológica é a criação de um mecanismo de financiamento às ações de proteção nas nações mais pobres. Assinado por 195 países – a única exceção foi a República Democrática do Congo – o acordo firmado no Canadá estabelece que os países ricos “forneçam pelo menos 20 bilhões de dólares anuais até 2025 e pelo menos 30 bilhões de dólares anuais até 2030”. O montante está aquém dos 100 bilhões de dólares anuais solicitados pelos países megabiodiversos, o Brasil entre eles, e fica a anos-luz dos 700 bilhões de dólares anuais que, segundo cientistas e ONGs, seriam necessários para o início de uma política efetiva em prol da biodiversidade em todo o planeta.

O acordo, entretanto, traz um avanço ao estabelecer que, além dos países mais industrializados, outros países que “voluntariamente assumam compromissos e obrigações” também possam fazer doações. Costurada pelo governo da China, que presidiu a COP-15, essa saída facilitará a atuação do próprio país e servirá para atrair outros eventuais doadores de peso, com destaque para os Estados Unidos, que não é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica.

“Este fundo será estruturado a partir do ano que vem. Foi criado especificamente para atender aos compromissos assumidos pela COP-15 e a expectativa é que em 2025 esteja funcionando plenamente”, diz Clayton Lino, diretor de Cooperação Internacional da Rede Brasileira de Reservas da Biosfera. Ainda que tímido, o avanço é comemorado, pois nunca havia sido estabelecido mecanismo semelhante para a obtenção de recursos públicos e privados, diz o ambientalista: “Um ponto chave é aumentar o fluxo financeiro dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento. Muitos países têm dificuldades em implementar medidas de controle e fiscalização das áreas protegidas.”

O sociólogo e ex-deputado federal Liszt Vieira, que durante dez anos nos governos de Lula e Dilma Rousseff foi presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e responsável pela execução dos compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, avalia que foi dado em Montreal um passo importante, ainda que simbólico: “O texto final aprovou resolução para que os países ricos forneçam até 2030 pelo menos o triplo da atual ajuda internacional para a conservação da biodiversidade. Foi um passo importante na luta para proteger a vida na Terra”. No entanto, alerta o experiente ambientalista, apenas assumir metas não é suficiente: “O sucesso será medido pelo progresso na implementação do que foi acordado”.

Para alcançar a esperada eficácia será preciso antes de tudo que os países signatários adiram efetivamente aos acordos firmados. Segundo maior desmatador, atrás apenas do Brasil, e também dona da segunda maior área de floresta tropical do planeta, a República Democrática do Congo não assinou o acordo firmado no Canadá. Em novembro, quando aconteceu em Sharm-el-Sheikh, no Egito, a 26ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-26), o governo congolês, assim como o brasileiro, foi um dos do que apresentou resultados aquém de suas metas para zerar o desmatamento ilegal até 2030.

Este compromisso foi ignorado por Jair Bolsonaro, porém reafirmado pelo presidente eleito Lula em sua passagem pela cidade egípcia. Paralelamente, os dois governos, ao lado da Indonésia, país que completa o pódio dos megabiodiversos, lançaram em novembro, durante o encontro do G20 realizado em Bali, a Aliança das Florestas, que prevê “cooperação na agenda ambiental, facilitação de políticas comerciais e desenvolvimento com foco na produção sustentável de commodities”.

Um integrante do grupo de trabalho sobre Meio Ambiente da equipe de transição lembra que essa discussão foi iniciada ainda no primeiro governo Lula, quando o Brasil apresentava uma redução acentuada no desmatamento da Amazônia e exercia liderança no grupo diplomático. Mas, ressalva a fonte, a realidade mudou e precisará ser reexaminada: “Assim como outras iniciativas do governo Bolsonaro, o acordo com Congo e Indonésia será objeto de exame e eventuais reconsiderações. Os objetivos da aliança podem ter sido desvirtuados, pois os governos mudaram”, diz.

Na visão do futuro governo, sob Bolsonaro, a Aliança das Florestas pode ter se transformado em um mero mecanismo para pedir dinheiro aos países mais ricos sem que sejam cumpridas minimamente as metas de redução do desmatamento, prática adotada nos últimos anos pelos governos de Brasil, Indonésia e Congo.

Para o advogado e ambientalista Rogério Rocco, que foi superintendente do Ibama no Rio de Janeiro no primeiro governo Lula, as últimas COPs não têm trazido avanços concretos: “Há 30 anos, desde a Rio-92, o mudo tenta implementar políticas para a preservação da biodiversidade, mas os resultados de todo esse longo período não são nada positivos”, lamenta. O que aconteceu no Brasil durante o governo Bolsonaro, diz Rocco, é um exemplo da fragilidade dos acordos internacionais face à instabilidade política em muitos países: “O Brasil tem potencial para aumentar muito mais suas áreas protegidas. O fato de nos últimos quatro anos não ter sido criada nenhuma Unidade de Conservação, além de todo o retrocesso nas políticas ambientais que já estavam estruturadas, demonstrou que mesmo os avanços já obtidos por países que se comprometeram em acordo globais são muito frágeis”.

Estimada pelo Observatório do Clima com base nos dados obtidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento na Amazônia, após o declínio observado nos governos Lula e Dilma, cresceu 60% nos quatro anos de governo Bolsonaro. A devastação se estende a outros biomas, sobretudo o Cerrado e a Mata Atlântica. Para reverter a tragédia ambiental brasileira, o futuro governo apostará na retomada de políticas públicas como, por exemplo, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).

Outra prioridade é a recomposição da capacidade de fiscalização e controle do Ibama e do ICMBio: “Os fiscais do Ibama já foram perto de 1,8 mil, mas hoje temos somente cerca de 700 atuando em todo o Brasil, o que é muito pouco”, diz Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do OC.

Rocco diz esperar que as políticas de combate ao desmatamento e proteção da biodiversidade caminhem de mãos dadas no País a partir de 2023: “O Brasil precisa cumprir os compromissos assumidos para a preservação da biodiversidade e desenvolver pesquisas e tecnologias para o fortalecimento das populações locais a partir dos atributos que tem o País graças a sua imensa diversidade biológica. Precisamos também de um choque imediato de ações para acabar com os altos índices de criminalidade, especialmente em Unidades de Conservação e Terras Indígenas”.

Coordenador do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e veterano nas discussões sobre biodiversidade, Renato Cunha avalia que “a COP sobre biodiversidade não foi tão badalada quanto à COP sobre clima”, mas ressalta que esta é uma discussão igualmente urgente. Segundo relatos dos cientistas da ONU, a Terra já vive “um novo processo de extinção em massa” que ameaça cerca de um milhão de espécies em um universo de oito milhões de animais e vegetais conhecidos.

O detalhe é que todos os processos de extinção de espécies em larga escala anteriores tiveram causas naturais, e o que vivemos agora é provocado em grande medida pelo homem. Os cientistas estimam que 75% dos ecossistemas do planeta já têm seu funcionamento desequilibrado pela ação humana.

O Brasil, na avaliação de Cunha, pode liderar uma agenda de mudança global com a autoridade de quem protege sua megabiodiversidade: “Mas, para isso, o País precisa cuidar melhor de suas Unidades de Conservação, tanto federais quanto estaduais e municipais. É preciso ampliar essas UCs, nos biomas terrestres, mas no mar também. Criar mais UCs marinhas e costeiras no Brasil é fundamental”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo