Carlos Bocuhy

[email protected]

Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, o Proam.

Opinião

O que Lula deve fazer para recuperar o protagonismo ambiental do Brasil

Não será fácil, mas só uma política ambiental interna consistente poderá garantir a retomada brasileira rumo à sustentabilidade

Foto: CARL DE SOUZA / AFP
Apoie Siga-nos no

Uma das primeiras ações do presidente Joe Biden ao assumir o governo foi agir sobre a política das mudanças do clima. Promoveu articulações junto ao Congresso, reverteu malefícios de ações judiciais e empreendeu esforços nas áreas de regulação e planejamento. Em primeiro lugar foi necessário inventariar e rever as ações de Donald Trump, com apoio de competente equipe de transição.

Assim deverá ser com Luiz Inácio Lula da Silva, frente ao enorme passivo institucional e ambiental deixado por Jair Bolsonaro. Há um quadro similar entre Biden e Lula, transições progressistas sucedendo administrações negacionistas de extrema-direita.

No Brasil, a tarefa de Lula da Silva não será pequena. Nada menos que colocar nos trilhos constitucionais a estrutura descarrilada de forma proposital por Jair Bolsonaro ao negar evidências científicas e desmantelar mecanismos de proteção ambiental.

No âmbito do Executivo, será preciso corrigir nos primeiros dias mais de um milhar de decretos, resoluções, portarias e normativas infralegais que foram propositalmente desregradas para “deixar passar a boiada”. Na visão da ministra Carmem Lúcia, a gestão Bolsonaro promoveu o atual estado de “cupinização institucional” — a tal ponto de criar falsas controvérsias, como fez a Embrapa para favorecer o agronegócio.

Os vícios e desvios estão imbricados na máquina administrativa. Normativas infralegais nocivas poderão ser corrigidas dentro da esfera da competência do Executivo. Por exemplo, é possível resgatar, por meio de decreto, o desmonte promovido na área da participação social, como foi o caso do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

As pressões econômicas que estiveram na base do governo de Jair Bolsonaro continuarão ativas. Buscarão meios para continuar a transitar junto ao novo governo e prover facilidades econômicas. Os benefícios do lucro fácil estimularão os bastidores do poder, apelando com o velho tola-lá-dá-cá que muitas vezes acaba atendido “em nome da governabilidade”.

Pressões oriundas do legislativo nacional continuarão a pressionar para favorecimento de setores retrógrados, como o agronegócio fora da lei, agressivo e ambicioso. Essas forças nocivas exigirão contrapeso de controle social, absoluta transparência e especial atenção para monitorar a justificativa e a motivação dos atos administrativos.

No âmbito do Executivo, será preciso corrigir nos primeiros dias mais de um milhar de decretos

Quando Joe Biden sucedeu a Donald Trump, suas ações foram rápidas e abrangentes. Em debates ocorridos na Harvard Law School, as medidas foram citadas como impressionantes em profundidade, escopo e velocidade.

A equipe de transição de Biden obteve alcance multidisciplinar na reconstrução da governança ambiental estatal. Houve transformação integral nos setoriais de governo afetos à área de mudanças climáticas, especialmente em áreas governamentais ambientais como a Enviromental Protection Agency (EPA) e a United States Fish and Wildlife Service, assim como nos ministérios de Economia e Agricultura.

De forma equivalente, o Brasil deverá concentrar esforços na reconstrução do Ibama, ICMbio, Embrapa, Funai e outros, permeando, com diretrizes ambientais, todos os ministérios estratégicos.

São preocupantes as notícias de que o coordenador da equipe de transição seja Geraldo Alckmin (PSB), o mesmo que indicou, com aval do setor ruralista, o nome de Ricardo Salles para exercer o cargo de secretário do Meio Ambiente de São Paulo. Como o tempo é senhor da razão, esperamos que a lição tenha sido bem apreendida: não se nomeia ruralista para a pasta de Meio Ambiente.

Lula da Silva também poderá promover, de forma rápida e efetiva, mudanças que estão ao alcance da atuação discricionária, dentro das atribuições do Poder Executivo. Como Biden, poderá aplicar esforços transformadores para orientar a agenda do clima, energia e meio ambiente, realizadas a partir da diretriz: “Buscar o clima em todos os lugares possíveis dentro do governo”.

Algumas das ordens executivas de Joe Biden podem ser perfeitamente tropicalizadas e replicadas por Lula de acordo com nossos biomas. Por exemplo, turbinar o Acordo de Paris revendo internamente as metas nacionalmente pretendidas e paralisar iniciativas referentes à extração de petróleo, especialmente em áreas ambientalmente frágeis. Por certo o Brasil tem suas prioridades, como atacar duramente com fiscalização integrada o desmatamento da Amazônia e a devastação do Cerrado.

Há um componente vital nessas transformações: evitar o loteamento do poder de forma incompetente meramente para atender apoios políticos. É preciso nomear gestores ambientalmente preparados e motivados para setores de proteção ambiental. Só com conhecimento e envolvimento será possível reconstruir bons meios regulatórios e de gestão, dando conta da imensa vulnerabilidade ambiental e social que o Brasil apresenta.

As agendas sobre clima, energia e meio ambiente também deverão contar com forte apoio político e envolvimento direto do Executivo, garantindo ainda sua transparência e plena participação social, essenciais para uma eficiente governança ambiental. Nesse sentido, o Brasil deve imediatamente ratificar o Acordo de Escazú, compromisso que foi abandonado na gestão de Jair Bolsonaro.

Mas a parte mais complexa está por vir, pois depende da capacidade de ação intersetorial. Há o dragão de sempre: a economia dos negócios como sempre foram (business as usual). Essa poderá ser a grande ação estrutural de um estadista para Lula: proporcionar à nação brasileira o salto estrutural da sobrevivência, promovendo um estado de governança ambiental a partir da economia voltada à sustentabilidade.

Lula também deverá estar atento para não adentrar em armadinhas legislativas que visam apenas a defesa econômica e que já custaram caro à administração ambiental nacional e ao meio ambiente. Como exemplo, podemos citar a revisão do Código Florestal, que ocorreu durante a primeira gestão de Dilma Rousseff, do PT.

No intenso debate ocorrido no Congresso Nacional, o Ministério do Meio Ambiente ingressou tardiamente e de forma tímida, mesmo contando com fortíssimo apoio científico no âmbito da sociedade civil. A inércia estatal facilitou a nova normatização, que resultou em intensa judicialização do Ministério Público e da sociedade civil, com perdas para a proteção ambiental no Brasil.

Na área de energia limpa, as iniciativas de Joe Biden também são exemplo a seguir. Encarou desafios na taxação do carbono, o que contava até mesmo como apoio de republicanos moderados. Encarar a maioria republicana no Congresso significava enfrentar obstruções que poderiam atrasar ou afastar medidas de ambientais, mas a administração Biden acabou por turbinar, por meio de medidas ambientais, seu plano de US$ 174 bilhões para veículos elétricos e sua infraestrutura e US$ 74 bilhões para melhorias na rede elétrica. Na área fiscal passou a eliminar subsídios para combustíveis fósseis e prover créditos fiscais e outros incentivos para energia renovável.

A administração de Lula terá grandes possibilidades. Sua eleição foi extremamente bem-vinda aos olhos da política global. A inserção do Brasil reforçará as possibilidades de um multilateralismo colaborativo do qual o país poderá se beneficiar, angariando amplo apoio para a proteção de seu imenso capital natural.

As recentes declarações da Noruega para a retomada de aportes de recursos para a Amazônia são prova disso. As mensagens de congratulações de mandatários repetiram a palavra “trabalhar juntos” e “meio ambiente”, denotando portas abertas e a eliminação dos ruídos antagônicos produzidos por Jair Bolsonaro.

Instâncias supragovernamentais como a OCDE, Mercado Comum Europeu e Mercosul serão aberturas promissoras. Estão trabalhando fortemente para implementar regramentos ambientais, contra a exploração predatória e a produção de commodities que transitam acobertadas por greenwashing.

As normativas internacionais que vêm sendo adotadas cada vez mais rechaçam produtos recheados de carbono, tidos como concorrência desleal por descumprimento de requisitos ambientais.

É cada vez maior a importância da regularidade climática, diante dos sucessivos e alarmantes relatórios do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (AR6 do IPCC), citados por Antonio Guterrez, secretário geral da ONU, como “um catalogar de nossos fracassos”.

Nesse cenário, resgatar a regularidade ambiental brasileira, colocando a casa em ordem por meio de atuação eficiente, significará a retomada do protagonismo do Brasil no cenário internacional. A sucessão de Donald Trump e de Jair Bolsonaro do cenário internacional são uma somatória positiva para que a humanidade possa avançar na luta contra a mudança climática, proteção da população mais vulnerável, proteção da biodiversidade e combate à desertificação.

Vencer as resistências retrógradas instaladas no Congresso Nacional será uma tarefa que implicará forte controle social sobre a constitucionalidade das propostas em tramitação, onde o baixo protagonismo do procurador-geral da República deverá ser compensado com suporte das instituições da sociedade civil mais independentes e progressistas.

Por fim, é preciso aferir a implementação e a efetividade das políticas ambientais. A capacidade gerencial do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) nunca deu conta deste quesito, em que pese ser fator imprescindível para a melhoria do sistema ambiental brasileiro, o que demandaria o próprio aprimoramento do Conama como elemento de controle social.

Esperamos que a trajetória de Lula, sua experiência e observação do atual momento do Antropoceno o tenham capacitado para empreender esta transição para a boa governança ambiental, que hoje é um imperativo diante das crises climática e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Estamos diante da possibilidade de novos avanços civilizatórios com a retomada de caminhos adequados. Não será fácil, mas só uma política ambiental interna consistente poderá garantir a recuperação do protagonismo ambiental internacional do Brasil, um processo que exigirá a firme ação do governo Lula e da sociedade brasileira atenta à prática do controle social.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo