Sociedade

Pai de santo denuncia ofensiva de empresa de celulose contra terreiro na Bahia; MP investiga grilagem

O histórico de episódios de violência entre a companhia e a comunidade Icimimó, no recôncavo baiano, levou o MP a acionar a Justiça no ano passado

O babalorixá Duda de Candola (na foto) denuncia invasões de terra por empresa de papel ao terreno do Ilê Axé Icimimó Agunjù Didê - Arquivo pessoal
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O sol ainda não havia aparecido por completo naquela quinta-feira, 31 de agosto, quando o babalorixá Duda de Candola entrou na área densa de mata próxima ao Terreiro Icimimó, em Cachoeira, no Recôncavo baiano. Levava nas mãos uma oferenda que seria entregue a Exu, divindade ancestral da comunicação. O rito, porém, foi interrompido quando ele percebeu que um funcionário da Penha Papéis e Embalagens, montado a cavalo, o vigiava.

A Penha Papéis e Embalagens é a pivô de um conflito de terras com o Icimimó, que se arrasta ao longo dos últimos anos e acumula episódios de violência e destruição de símbolos sagrados do terreiro.

O medo logo se instalou. Numa época em que os ataques violentos contra figuras de liderança de origens africanas estão em ascensão, aquele era o alerta que faltava para a comunidade. Em agosto, mesmo sob proteção federal, a ialorixá Bernadete Pacífico foi executada a tiros enquanto assistia televisão com os netos. O caso aconteceu no quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, região metropolitana de Salvador.

“Essa violação vem se repetindo de forma continuada”, diz Pai Duda a CartaCapital. “Precisamos de atenção do Poder Público. Será que vão esperar uma desgraça acontecer para tomarem uma providência?”

A história do Icimimó remonta ao século XVIII, quando embarcações portuguesas chegaram ao litoral da Bahia. Entre os inúmeros africanos escravizados trazidos durante a colonização estava Pai João, natural da Nigéria. Foi ele quem, em 1736, fundou o templo dedicado a Xangô, o orixá associado à justiça. Mais de um século depois, a comunidade se deslocou para Cachoeira sob a liderança da ialorixá Judith Ferreira do Sacramento. O terreno foi comprado da União Fabril da Bahia por 600 mil réis.

A área de 22 hectares é reconhecida como patrimônio cultural da Bahia pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia, o Ipac. Também teve seu tombamento provisório e emergencial decretado pelo Iphan. O endosso das instituições, contudo, não tem sido o bastante para conter as sucessivas investidas da Penha Papéis e Embalagens, que se diz proprietária das terras, apesar de o terreiro ter a escritura.

O conflito chegou ao ápice em 2020, quando o terreiro interrompeu as atividades por conta da Covid-19. Cerca de 50 homens armados que, segundo os moradores, seriam funcionários da empresa, invadiram a propriedade dando tiros para o alto e deixaram um rastro de destruição: artefatos quebrados, inúmeros pés de bambu cortados e assentamentos destruídos. Idosos que estavam hospedados no local chegaram a passar mal e precisaram ser socorridos. Além disso, também havia indícios de queimadas e desmatamento na mata próxima ao terreno. A reportagem teve acesso ao boletim de ocorrência, registrado na Delegacia Territorial de Cachoeira.

Rastro de destruição: funcionários de empresa de papel invadem terreno e destroem símbolos religiosos do Ilê Axé Icimimó Aganjù Disè, em Cachoeira – Arquivo pessoal

“Eles chegaram com grande violência, eram vários homens armados”, relembra o babalorixá. “Chegaram, cortaram arames, quebraram assentamentos centenários de orixás, desrespeitaram a nossa ancestralidade”.

A disputa em torno das terras, porém, é mais antiga. Mesmo antes de Pai Duda assumir a liderança do terreiro, em 1999, pessoas supostamente ligadas à empresa já haviam feito incursões ao terreno para plantar bambu, matéria-prima da produção de papel e celulose. A presença da espécie, relata o líder religioso, tem sido prejudicial às nascentes. Além disso, a plantação é clandestina e, por conta de sua localização, qualquer foco de incêndio pode destruir toda a área onde está localizada a sede do Icimimó.

“Teve um incêndio, há um tempo atrás, que chegou a 50 metros da casa do terreiro. Queimou a roça toda. O bambu é como se fosse gasolina”, afirma o pai de santo.

Com a tentativa de retirar a plantação, o grupo Penha Papéis e Embalagens passou a reivindicar seu direito à propriedade. Para isso, apresentou documento emitido em 2005, no qual alega ter a possa da área onde está o terreiro. O Ministério Público da Bahia, entretanto, vê indícios de grilagem e outras irregularidades fundiárias.

A grilagem de terras é uma prática antiga que consiste em invadir terras públicas através do desmatamento e de violência.

Trecho do boletim de ocorrência registrado por Pai Duda em setembro deste ano contra a Penha Papéis e Embalagens, ao qual CartaCapital teve acesso.

Com sede em Santo Amaro da Purificação, a Penha Papéis e Embalagens se instalou na Bahia em 2005, atuando com a produção do material através da queima de cavacos de bambu. A empresa está distribuída em outros quatro estados brasileiros e possui dívidas com a União no valor de 10 milhões de reais, segundo informações públicas da Receita Federal.

O histórico de episódios de violência entre a companhia e a comunidade Icimimó levou o MP a acionar a Justiça no ano passado. O pedido, assinado pelo promotor Ernesto Cabral de Medeiros, solicitava que funcionários da Penha Papéis fossem proibidos de entrar na propriedade do terreiro e destruir objetos sagrados. Até o momento, não houve uma decisão sobre a ação civil pública.

A antropóloga Andrea Dora, co-fundadora da Rede Makaia e integrante do Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação (Opará/Uneb), defende a articulação entre diversos setores do governo estadual para a criação de políticas públicas que tenham por objetivo a promoção da segurança às lideranças de comunidades tradicionais.

“Essas pessoas são ameaçadas o tempo todo, os territórios são invadidos o tempo inteiro e, às vezes, não há um tratamento adequado à situação e ao que ela realmente significa. Precisamos ouvir esses gritos“, pontua.

“Casa forte onde só se faz o bem” – O Terreiro Ilê Axé Icimimó Aganju Didé possui mais de 285 anos de tradição no culto aos Orixás – Reprodução/Arquivo Pessoal

Para Ilzver Matos, professor de Direito da Universidade Federal de Sergipe, o racismo é um elemento determinante no processo de negação de direitos ambientais e religiosos aos povos e comunidades tradicionais no Brasil. “Não é novidade nenhuma [este cenário], a não ser para quem é cego e não quer ver, para no fundo se beneficiar do sangue e das mortes sobre a terra e sobre os territórios tradicionais”, pontua.

O assassinato brutal de Bernadete Pacífico, acrescenta o pesquisador, expõe um cenário de extrema hostilidade às comunidades de terreiro, mas pode levar à impressão de que isso seja um fenômeno recente e até brutalmente isolado. “De norte a sul, de leste a oeste do Brasil, desde muitos anos, há registros de mortes de Babalorixás e Yalorixás, de outras lideranças de povos e comunidades de terreiro e de matriz africana, além de líderes indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos”, acrescenta.

Enquanto isso, há insegurança por toda a parte – e os dados oficiais dão rosto ao medo vivido pelos líderes religiosos. Um levantamento da Rede de Observatórios de Segurança divulgado em junho deste ano aponta a Bahia como o segundo estado do Brasil com mais ocorrências de violência contra povos e comunidades tradicionais: foram 428 vítimas de violência no intervalo de 2017 a 2022.

Uma carta, produzida pelas lideranças da comunidade e encaminhada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao governador Jerônimo Rodrigues, ambos do PT, expõe as incertezas do terreiro em meio ao conflito com a empresa.

“Respinga em nós as incertezas da continuidade da vida, incertezas sobre a resolução a resolução de conflitos fundiários que nos atingem, sobre a proteção dos nossos direitos mais básicos pelo Estado. Não existe possibilidade de reconstrução democrática com a continuidade de atos violentos que vitimam pessoas negras que gritam pelos seus direitos“, pontuam.

Durante a produção desta reportagem, representantes de órgãos públicos estiveram no local devido à repercussão do caso. A Polícia Militar da Bahia também determinou a inclusão do terreiro no programa Rondas da Liberdade, que consiste no apoio da 27ª Companhia Independente da PM a comunidades tradicionais em conflitos fundiários.

Além disso, a Câmara de Vereadores deve apreciar um projeto de lei que reconhece o Ilê Axé Icimimó Aganjù Didê como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial de Cachoeira. A proposta foi apresentada pelo vereador Laelson Bispo (PSB).

Com a palavra, os envolvidos

Procurada por CartaCapital, a empresa Penha Papéis e Embalagens não atendeu às tentativas de contatos por e-mail e telefone.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) destacou que acompanha de perto a situação enfrentada pela comunidade do Icimimó desde que tomou conhecimento do caso. Por se tratar de uma questão de segurança pública, informou o órgão, notificou as instâncias do governo da Bahia responsável pelo tema.

Ainda segundo o Iphan, o terreiro está em processo de tombamento definitivo e encontra-se tombado de forma provisória e emergencial. “[A medida] confere ao bem cultural graus de proteção jurídica, obrigando o poder público, nas suas diversas esferas, a promovê-lo e protegê-lo como Patrimônio Cultural brasileiro”, pontuou.

O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia ainda não responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.

Também procuramos o Ministério da Igualdade Racial, que destacou ter “reforçado os diálogos interinstitucionais para que haja o correto acolhimento das pessoas que sofrem violência”.

“Os últimos anos foram de muita violência e invisibilidade do que ocorre contra o Povo de Matriz Africana e de Terreiro. Estamos em um esforço gigantesco de reconstrução da credibilidade das instituições federais quando o tema é Racismo Religioso”, pontuou.

Em nota, o Ministério Público da Bahia disse que aguarda uma decisão sobre a ação civil pública enviada à Comarca de Cachoeira no ano passado. O órgão ainda pontuou que, diante dos novos relatos de violência, solicitou informações à Polícia Militar “para adotar as medidas cabíveis dentro das suas atribuições”.

A Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi) disse acompanhar o caso através das suas instâncias internas.

Destacou ainda que aprovou, em março deste ano, um plano de enfrentamento à violência contra povos e comunidades tradicionais, cujo objetivo é desenvolver ações para manter a integridade de pessoas e patrimônio em áreas de conflitos decorrentes de disputas de terra.

A CartaCapital, o governo da Bahia disse que acompanha o caso e tem se reunido constantemente com lideranças dos movimentos populares e comunidades tradicionais em Salvador e no interior.

“Como parte do esforço para resolver a questão da terra, o governador Jerônimo tem buscado junto ao governo federal e órgãos do judiciário celeridade no processos de regularização fundiária das comunidades tradicionais da Bahia.”

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