Sociedade

Mulheres que trabalham na pesca: histórias de desigualdade e opressão

Pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense investigam principais conflitos vividos por trabalhadoras do setor pesqueiro

Trabalhadoras da pesca artesanal enfrentam cotidiano de opressão em municípios do Rio de Janeiro. Foto: Mariana Sena Lopes
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Com o pai e o marido pescadores, Natália Barros Azeredo diz que não teve outra alternativa senão viver da pesca. Hoje, ela passa o dia limpando peixes e camarões, reunida a outras mulheres a céu aberto, no bairro de Farol de São Thomé, na cidade de Campos dos Goytacazes, região norte do estado do Rio de Janeiro.

“Vim desse ramo e, hoje em dia, vivo disso porque não tem outra coisa para fazer. Ganho minhas mixarias aqui, às vezes trabalho para fora para tentar ajudar o meu esposo. Leva meses, tem vez, sem fazer nada no mar. Sabe o que é nada? Nada. E não tem ninguém por eles”, conta ela.

Da mesma atividade se sustenta Dalva da Silva Ribeiro. Com as mãos machucadas pelo contato diário com as espinhas dos peixes, o remédio para as frequentes inflamações é uma mistura simples de vinagre, sal e água quente. “E dói, hein?”, diz ela. Assim como Natália, Dalva se junta a outras colegas na rua durante o dia, para filetar peixes e limpar camarões, sentadas lado a lado.

“Eu tenho orgulho de ser uma limpadora de peixe e camarão. Para mim não é vergonha, é um serviço honesto como outro qualquer. E em Farol não tem nada, você vai trabalhar em quê? Ou você limpa um peixe e um camarão, ou você vai catar latinha”, afirma.

Idosas, jovens, casadas ou chefas de família, mulheres de diferentes perfis desenvolvem o trabalho no ramo da pesca sob condições bastante precárias em Campos dos Goytacazes. Em primeiro lugar, estão vulneráveis se consideradas as exigências técnicas da segurança do trabalho, pois a atividade ocorre nos seus quintais, calçadas ou frigoríficos não legalizados, muitas vezes sem a proteção necessária contra acidentes.

Há ainda a baixa remuneração. Em média, essas mulheres recebem entre 2,50 e 3 reais a cada quilo de peixe limpo e filetado ou camarão descascado. Ficam por conta delas os próprios instrumentos de trabalho, como facas, luvas e aventais. A jornada pode variar de 6 a 10 horas por dia, de forma intermitente, a depender do quanto os pescadores trazem do mar e da demanda dos “atravessadores”, os donos da mercadoria.

Além disso, essas trabalhadoras têm dificuldades no reconhecimento profissional. À primeira vista, o trabalho da pesca é associado aos homens, o que faz dessas mulheres constantes vítimas de machismo. A dupla jornada de trabalho, comum à larga escala da população feminina no Brasil, também é rotina para essas mulheres, que acumulam ao dia a dia de labuta os serviços domésticos e a criação dos filhos.

Outra questão é que a pesca, em geral, é compreendida como o ato da captura do peixe no mar, atividade com grande presença masculina. No entanto, o setor pesqueiro envolve uma cadeia de funções. As mulheres, além de atuarem na captura, frequentemente ocupam postos essenciais, mas vistos apenas como “complementares”, como as filetadoras, descascadoras, separadoras, catadoras, limpadoras, vendedoras e beneficiadoras.

Na relação com o Estado, o cenário é desanimador para muitas delas. Mulheres de diferentes atividades se queixam de maior dificuldade para obterem o registro profissional e relatam preconceito quando vão cobrar seus direitos em instituições públicas. O Registro Profissional da Atividade Pesqueira (RPG) é fundamental para receber benefícios, como o seguro defeso, cedido por quatro meses no período de paralisação da pesca para preservação das espécies.

Segundo publicação de 12 de fevereiro deste ano, do Diário Oficial do município de Campos dos Goytacazes, dos 74 trabalhadores considerados aptos para receberem o seguro defeso, 17 são mulheres. Mas o número foi maior em 2019, quando 196 mulheres foram consideradas aptas, de 257. Em 2018, 99 homens e 34 mulheres foram considerados aptos. Apesar dos números descontínuos, Dalva diz que desistiu de tentar conseguir o seguro por já ter se sentido “humilhada”.

 

Essas histórias são retratadas pela pesquisa “Mulheres na Pesca”, finalizada em fevereiro deste ano e administrada pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e pela Fundação de Apoio à Pesquisa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O estudo investigou, desde abril de 2017, os principais conflitos vividos por trabalhadoras da atividade pesqueira em sete municípios fluminenses: Campos dos Goytacazes, São Francisco de Itabapoana, São João da Barra, Macaé, Quissamã, Cabo Frio e Arraial do Cabo.

Vinte e três pesquisadores recolheram dados, acompanharam e entrevistaram mais de 180 mulheres que vivem da pesca. Agora, acabam de divulgar na internet um mapa completo com todos os levantamentos, descrições e representações cartográficas sobre as principais dificuldades que elas enfrentam. Há ainda um canal no YouTube com uma série de vídeos de depoimentos com filetadoras de peixes, marisqueiras, descascadoras de camarão, catadoras de ostras, entre outras.

Em entrevista a CartaCapital, a professora e pós-doutora em Educação, Silvia Alicia Martinez, relata que, além do reconhecimento profissional, essas mulheres também enfrentam outros quatro grandes conflitos: a prática nociva dos grandes empreendimentos, como as plataformas de petróleo e gás; os efeitos da degradação ambiental; a disputa pelo território com empresas e produtores rurais; e as consequências da pesca inadequada, como a sobrepesca por barcos industriais.

Em um mapa disponível online, a pesquisa detalha como todos esses obstáculos afetam as mulheres de modo particular. Ao longo do ano, as informações também devem virar um livro.

Confira a seguir, na íntegra, a entrevista de CartaCapital com a professora Silvia Alicia Martinez.

CartaCapital: Qual foi o passo a passo do projeto?

Silvia Alicia Martinez: A gente pensou em três grandes etapas. Uma foi no aprofundamento teórico, tanto no campo de gênero e trabalho feminino, como nos conflitos socioambientais. Tentamos ver como as perspectivas femininas dialogam com os conflitos socioambientais.

Também fizemos leitura de dados secundários, dos municípios, das mulheres que trabalham, que estão nesses sete municípios. São dados mais gerais da situação da mulher e dados mais específicos, a partir do banco de dados do projeto Pescarte. Estamos vinculados a esse projeto, que é da nossa universidade, e nele há um levantamento bastante exaustivo dos pescadores e seus familiares. Então, a ideia era partir dos dados do Pescarte em relação às questões de gênero. Esse foi um grande estudo quantitativo de dados secundários. 

A partir disso, nós passamos para uma segunda grande etapa da pesquisa, que eram as rodadas de campo nas comunidades dos sete municípios. No início, pensamos em três rodadas de campo. Na primeira, com informantes-chave das comunidades, ou seja, técnicos também ligados ao Pescarte, porque o nosso recorte espacial estava ligado aos sete municípios aos quais o projeto estava ligado, e eles poderiam nos dar dicas. Entrevistamos esses técnicos porque eles já estavam em campo. Na segunda rodada, fizemos entrevistas com mais de 180 mulheres. E a terceira etapa planejada foi a de filmagem. Depois de levantarmos os dados qualitativos, a gente passou por um período bem extenso de transcrição das entrevistas na íntegra. 

O objetivo do projeto era fazer um mapa e georreferenciar onde estavam os principais conflitos das mulheres que trabalham na pesca. A gente começou a usar as mulheres que trabalham na cadeia produtiva da pesca, e por que isso? Porque há toda uma questão de identidade de se entender ou não como pescadora. Muitos associam o ato de pescar à captura do peixe, do marisco, e nem todas trabalham na captura. A grande maioria trabalha no beneficiamento, como, por exemplo, no descasque do camarão. Raramente quem descasca o camarão é o mesmo que captura o camarão. E algumas dizem: “Eu não sou pescadora, sou descascadora de camarão”. Com a pluriatividade da pesca, abandonamos a “mulher pescadora” e tentamos abordar o máximo de mulheres que atuam na cadeia produtiva.

“Quando elas viam os vídeos, falavam sobre as mesmas questões e foram surgindo novos problemas e conflitos. É difícil acabar uma pesquisa”, diz professora. 

Após as entrevistas, os pesquisadores analisavam o conteúdo e traziam para o grupo para discutirmos e categorizarmos os conflitos socioambientais. Categorizamos cinco grandes conflitos. Feito isso, passamos para uma elaboração de uma ficha do conflito socioambiental. Para chegarmos a elaborar essa ficha, demoramos meses, para decidir o que era relevante inserir no documento, como, por exemplo, quem são as mulheres envolvidas, que entidades atuam nessas localidades, qual a caracterização do conflito. Tivemos que mergulhar profundamente em cada um dos conflitos para explicarmos o que acontece, tanto a partir das entrevistas como a partir da literatura existente. Na mesma ficha, há fotografias e vídeos. A elaboração do vídeo partiu de uma terceira rodada de campo nos sete municípios, mas a gente só filmou depois de entendermos bem o que acontecia.

Em seguida, surgiu uma questão sobre como fazer que a população soubesse dos resultados. Nós entendemos que o contato presencial seria a melhor maneira de levar os resultados. Então, acabou que se constituiu uma quarta rodada de campo, porque fomos em cada uma das localidades visitadas para levar e explicar os resultados da pesquisa.

Elaboramos uma cartilha com o passo a passo para ensinar as mulheres como usar o mapa e os links para os vídeos. Então, além de ser uma rodada “devolutiva” nas comunidades, com atividades pós-pesquisa, também serviu para validar os vídeos, porque passávamos as imagens em escolas e associações, ou na casa das pessoas, ou nos restaurantes delas, e quando elas viam os vídeos, continuavam falando sobre as mesmas questões e outros temas surgiam. Foram surgindo novos problemas e conflitos. É difícil acabar uma pesquisa. Mas um dos grandes conflitos é a falta de acesso às políticas públicas, principalmente, a documentação da pesca.

O financiamento da pesquisa vem de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ou seja, uma multa ambiental, pelo vazamento de petróleo da empresa Chevron, hoje comprada pela empresa de petróleo e gás PetroRio. Parte do recurso dessa multa foi direcionado pelo Ministério Público para pesquisa. O edital, administrado pelo Fundo Brasileiro pela Biodiversidade (Funbio), foi uma medida de compensação ambiental da indústria de petróleo e gás natural.

CC: Qual é o perfil predominante dessas mulheres?

SAM: São mulheres de variadas idades. Há idosas, jovens, crianças pequenas. O que fica bastante evidente é por que elas gostam dessa atividade. Há muitas beneficiadoras que trabalham em suas próprias casas, porque se sentem livres. Mas qual é a liberdade que elas sentem? Elas tomam conta do trabalho doméstico também, cuidam dos filhos enquanto descascam, enquanto filetam. O que elas, muitas vezes, entendem como benefício de trabalhar ali, a gente pode ver como uma sobrecarga do trabalho, pelas atividades domésticas, em que elas acabam tendo que dar conta de tudo ao mesmo tempo. E a própria atividade profissional é desvalorizada porque é muito associada ao trabalho doméstico também. É uma característica de gênero muito marcante na pesca. A pesca é vista como um trabalho de homens, e tudo o que a mulher fizer é um trabalho complementar, mesmo ela fazendo a atividade do homem ou mais atividades.

Mulheres realizam limpeza e filetagem do pescado, na comunidade de Praia Grande em Arraial do Cabo. Foto: Daniel de Oliveira D’El Rei Pinto

Sobre o grau de instrução, uma das pesquisadoras acaba de entrar no mestrado e ela vai trabalhar essa questão em duas comunidades. A gente vê que não havia oferta. A universalização da educação básica é uma conquista muito recente, nem chegamos a universalizar, é uma meta ainda. Nessas comunidades, o que a gente pode observar é que não havia oferta. São localidades afastadas, muitas vezes. Tem as exceções, mas a gente percebe que não havia políticas de educação e culturalmente não havia grandes estímulos para continuar estudando. São comunidades em que se você frequentar a escola para se apropriar da leitura, escrita e cálculo, já era suficiente. Há grandes exceções. Tem uma catadora de caranguejos que hoje está no doutorado na Uenf. É impossível generalizar. Mas em termos gerais, há pouco acesso à instrução formal. É menor do que a média dos municípios.

Tem muitas que são companheiras de pescador, mas há muitas famílias que se sustentam pelo trabalho das mulheres. Segue uma média nacional. Inclusive, na cartografia, uma das camadas que a gente deixou no mapa são esses lares que têm mulheres à frente das famílias e representam o sustento principal. Quanto mais vermelho, mais quantidade. Há muitas mulheres que são chefas de famílias nesses sete municípios. 

CC: Qual é o principal conflito relacionado à documentação?

SAM: Hoje não está sendo emitida a carteirinha da pesca para ninguém. Isso aí é um problema nacional que atinge homens e mulheres, porque se parou de emitir a carteira da pesca. 

[Questionada por CartaCapital, a Secretaria de Aquicultura e Pesca informou que, atualmente, estão cadastrados 959 mil pescadores profissionais artesanais. Segundo a Secretaria, os pescadores dispõem do benefício de seguro-defeso, de acordo com critérios regulamentados por decreto de 2015. No entanto, perguntada sobre quantos pescadores foram registrados em 2019, a Secretaria disse que “O relatório do Sistema Informatizado do Registro Geral da Atividade Pesqueira não permite a visualização de dados em marco temporal”.]

Se você não tem a carteira, está excluído de qualquer tipo de benefício e fica em um trabalho informal. Mas, quando a carteira da pesca estava sendo emitida, as mulheres não tinham acesso a ela também. É muito complexo o tema da documentação. Uma pesquisadora do nosso projeto se dedicou a isso, mas eu vou fazer uma síntese. 

Há uma questão da identidade. Nessa legislação, historicamente, só se reconheceu o pescador artesanal. É isso o que eu te falei antes, o pescador está muito associado à captura. Tem as mulheres que trabalham na captura, mas também para muito além disso. Tem as que descascam, processam, filetam, as que fazem quitutes, pescados, são muitas atividades. E elas estavam excluídas da possibilidade de ter acesso à documentação por conta disso. Depois se ampliou para os trabalhadores da pesca, mas há uma série de problemas em volta disso porque é algo complexo para se destrinchar.

Por exemplo, em Campos dos Goytacazes, há as marisqueiras do Farol. Em Campos, tem uma legislação municipal que dá o seguro defeso para os trabalhadores da pesca, para aqueles que não têm o registro nacional da atividade pesqueira. Mas para você ter esse seguro, você precisa ser reconhecida como marisqueira. Só que há as que não são marisqueiras, e sim filetadoras. Marisqueiras são as que catam mariscos. Aí, para obter o benefício, as filetadoras se acostumaram a serem chamadas de marisqueiras, embora estejam longe de serem marisqueiras. Elas não são, mas acabaram tendo uma estratégia para se adequar à nomenclatura da legislação. 

“É uma característica de gênero muito marcante na pesca. A pesca é vista como um trabalho de homens, e tudo o que a mulher fizer é um trabalho complementar”, avalia pesquisadora.

Tem outro caso que acompanhamos de perto, de uma comunidade quilombola em São Francisco de Itabapoana. Elas são catadoras de ostras e absolutamente se recusam a serem chamadas de pescadoras ou marisqueiras. Elas se reconhecem e lutam para serem compreendidas e identificadas como catadoras de ostras. E elas têm o direito de lutar por essa identidade. Então, a legislação vem tentando resolver os conflitos, e acaba criando outros, como o de identidade. 

Elas também relatam outros conflitos interessantes de comentar. É uma questão geral. Quando elas chegam para o poder público para solicitar algum direito e se arrumam, porque gostam de se arrumar, fazer a unha, arrumar o cabelo, quem está no poder público desconfia delas porque há uma representação dessa mulher trabalhadora que tem que ser despenteada, mal vestida, com cheiro a peixe. É uma observação delas, sobre a desconfiança que geram nos outros quando elas se arrumam para solicitar algum direito. É um absurdo que alguém de um gabinete suspeite da profissão de uma mulher só porque ela tem unhas compridas.

Eu presenciei uma cena fantástica. A gente foi, um dia, entrevistar uma catadora de caranguejos. Ela entra no mangue, lida com lama, com o próprio caranguejo, que é um bicho traiçoeiro. Ela fica horas e horas no mangue, volta para casa e fica horas em pé separando o caranguejo da rede. Ela vai catalogando o caranguejo pelo tamanho, se são fêmeas ou machos. Acompanhamos por uma tarde inteira. No dia seguinte, voltamos à casa dela por algum motivo, mas sem avisar. Batemos palma, entramos na casa, e então passou a nora dela. E ela falou assim: dona fulana, você vai querer pé e mão ou só mão? “Pé e mão, minha filha”. Eu achei sensacional, porque ela trabalhava com as mãos, mas não abandonava a vaidade e o cuidado. É espetacular porque é a vida delas. Por que elas não podem ter vaidade? E muitas vezes, tratando-se de um tipo de trabalhador, rural ou da pesca, a sociedade tem uma representação negativa e muitas delas se sentem ultrajadas. 

Então, a gente juntou identidade profissional e documentação. Está um pouco imbricado o problema.

Mulher trabalha catando ostras na Praia de Manguinhos, no município de São Francisco do Itabapoana. Foto: Cíntia Rodrigues Bach

CC: Que outros principais conflitos vivem essas mulheres?

SAM: Foram cinco categorias de conflito. Um, por exemplo, são os grande empreendimentos. É o caso dos portos e da indústria de petróleo e gás, como isso influencia na vida delas. Essa questão é importante porque não diz respeito somente a elas, é própria da comunidade, mas a gente sempre parte do olhar delas. Como esses grandes empreendimentos acabam prejudicando elas? Em São João da Barra, tem o Porto do Açu, que trouxe vários problemas. Um deles é que foi construído no lugar onde era um banco onde se catava camarão. Então, até identificarem outros bancos, ficaram sem o camarão. E o camarão repercute diretamente nas mulheres, porque elas é que o descascam.

As plataformas de petróleo produzem o afastamento dos cardumes, porque há mudança de rota dos peixes. Então, os barcos têm que ir cada vez mais longe para pescar. Isso traz uma série de consequências para as mulheres, que ficam ali aguardando o marido voltar do mar com os peixes para filetar. Então, nos grandes empreendimentos, há áreas de exclusão das plataformas, onde os barcos não circulam e precisam procurar outros lugares. Além disso, há desapropriações que geram situações bem complexas. As indústrias acabam disputando a área de pesca. 

Já que estou falando de disputa, outro conflito que elas vivem é a disputa pelo território. A gente viu que há uma disputa, tanto pelo território como nas áreas marítimas. Por exemplo, no município de Quissamã, há uma lagoa onde várias comunidades dependem dela para sobreviver. E muitos moram em casas com quintais que chegam até a lagoa. Só que fazendeiros cercaram a lagoa. As lagoas são nacionais, federais, mas os produtores rurais fecharam a lagoa com cerca elétrica e as mulheres não conseguem entrar no quintal delas. Então, elas têm que andar quilômetros até entrarem no lugar que eles permitem como entrada. Daí, acabam deixando a embarcação mais distante, e até perdendo redes, porque não têm como tomar conta num lugar mais próximo da casa. 

No espaço marítimo, acontece a mesma coisa. O turismo da Região dos Lagos faz com que lugares onde elas sempre pescaram se tornem regiões de jet-ski. Quando chega a temporada de verão, os turistas passam com jet-skis e se sentem no direito de expulsar o outro. Essa disputa pelo território é encontrada em diversos pontos dos municípios analisados.

Outro ponto é a degradação de rios e lagoas, por causa do esgoto. Por exemplo, o Rio Paraíba vai recebendo esgoto, desde as indústrias de São Paulo, esgoto doméstico. Teve grandes catástrofes ambientais de poluição dos rios e isso faz com que se diminua a oferta de peixes e cada vez se tem menos lugares para pescar. Muitas vezes, elas acabam se tornando filetadoras de peixes que vêm de fora. Elas têm que trabalhar para outros, porque não se tem onde pescar ali. Há um grande discurso delas sobre a escassez. Em São Francisco de Itabapoana, há um lugar chamado Lagoa Feia, que era braço do Rio Itabapoana, onde se estabeleceram pequenas centrais hidrelétricas que elas não conseguem ver por se tratar de outro estado [o curso de água banha os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo]. Não tem mais água e não tem mais peixe. Então, as mulheres acabaram sendo filetadoras de pessoas que trazem o pescado para elas filetarem. E elas filetam por quilo. Então, assim, a degradação dos rios e lagoas são grandes conflitos socioambientais.

Outro problema nós chamamos de pesca inadequada. São dois aspectos. O primeiro tem a ver com o seguro defeso. As mulheres relatam um desacordo entre a data fixada e o período de desova. Na ficha, a gente entendeu que há um desacordo entre o saber técnico e o saber prático. Em lugar de você proteger a espécie, você acaba prejudicando, porque elas vão pescar no momento da desova. Então, uma reivindicação é que as datas de fixação do defeso sejam congruentes com as datas em que elas observam. Elas pedem que sejam analisadas as espécies, porque elas não concordam com essas datas. Elas acham que essa medida de proteção tem que ser usada em outra data. 

O segundo aspecto é a presença de barcos industriais em áreas tradicionais da pesca artesanal. A presença dos barcos industriais, se você observar, é grande na Região dos Lagos, acaba produzindo uma sobrepesca que provoca a escassez do pescado, principalmente pela questão de não ter malhas adequadas para essa captura. Como é uma malha fina, [a pesca industrial] pega outras espécies para além do que se quer pescar, o que não acontece com a pesca artesanal.

CC: Como a senhora avalia a gestão do governo do presidente Jair Bolsonaro na Secretaria de Aquicultura e Pesca, comandada pelo secretário Jorge Seif Júnior? Essas pescadoras estão sentindo mudanças em relação ao novo governo?

SAM: Eu acho que o desmonte vem de antes. Ou seja, não houve nenhum avanço. Eles pararam de dar a documentação da pesca já há vários anos. Então, toda a fartura de editais para a pesca que houve no governo Lula e no primeiro governo Dilma, eles acabaram. Não é só agora. Está piorado, mas é um desmonte que vem de mais longe. Eu não saberia responder, ao certo, agora. Avanço não há. E agora se tem outras coisas.

Há um grande desmonte de políticas, como o Pronera [Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária], que era voltada para os trabalhadores rurais. Uma política que era muito importante para os trabalhadores da pesca era o programa de alimentação escolar. A legislação, como estava, obrigava os municípios a comprarem dos trabalhadores rurais e pescadores para a merenda escolar. Desde o momento que você está querendo acabar com as políticas para a agricultura e pesca familiar, há grandes retrocessos nas políticas sociais. 

Eles estão combatendo a agricultura familiar. A gente está na era dos grandes produtores rurais de novo. Então há um combate.

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