Mais de 1 milhão de pessoas vivem em situação de ‘escravidão contemporânea’ no Brasil, aponta estudo

País ocupa 11ª colocação no ranking global da organização Walk Free; países do G20 sustentam a escravidão moderna, importando quase meio trilhão de dólares em produtos vindos de trabalho nestas condições

Foto: Cid Vaz/TV Bahia

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Reflexo de um processo histórico incompleto, a escravidão persiste no Brasil. Último país da América a abolir o trabalho escravo, o Brasil sente, mais de um século depois, os reflexos de um processo conduzido, segundo a literatura sobre o tema, sem levar em consideração a realidade concreta da massiva população libertada. Ano após ano, crescem os números de pessoas resgatadas em condição análoga à escravidão no país. Mais recentemente, um dado concreto expõe a extensão do fenômeno: mais de 1 milhão de pessoas vivem em situação de “escravidão contemporânea” no Brasil.

A estimativa é do Global Slavery Index 2023, uma espécie de índice da escravidão mundial, divulgado nesta quarta-feira 24 pela Walk Free, uma organização internacional de direitos humanos responsável por produzir dados sobre escravidão contemporânea.

A organização apontou, com base em dados de 2021,  que cerca de 49,6 milhões de pessoas vivem em estado de escravidão contemporânea no mundo, das quais 1,05 milhão estão no Brasil. Vale destacar que, entre 2018 e 2021, segundo a própria organização, o número de “escravos contemporâneos” cresceu em 10 milhões de indivíduos.

O número local põe o Brasil na 11ª posição entre os países que têm mais pessoas nessa condição, em um ranking com 160 países. Os primeiros lugares são ocupados por Índia (11 milhões), China (5,8 milhões) e Coreia do Norte (2,3 milhões). Os Estados Unidos ocupam o décimo lugar, com 1,1 milhão de indivíduos em estado de escravidão contemporânea.

A relação entre o número total estimado de pessoas em condição de escravidão contemporânea e a população dos países analisados permitiu à Walk Free desenvolver, também, um ranking da prevalência da escravidão sobre o tamanho das populações. Nesse caso em específico, a Coreia do Norte lidera a estatística, com 104 escravizados a cada mil habitantes, seguida por Eritreia (90) e Mauritânia (32). 

O Brasil tem, segundo a organização, cerca de 5 escravizados a cada mil habitantes, o que põe o país na categoria de nações com “média/baixa” prevalência.


A quinta edição do índice da Walk Free é baseada em fatores individuais e sociais para a escravidão, percebidos através de entrevistas e coleta de dados quantitativos. Em uma perspectiva mais ampla, a organização apontou que, dos países analisados, 87 criminalizam os trabalhos forçados e 137 tratam como crime o tráfico de pessoas. 

Entretanto, o estudo aponta que, apesar do fato de que “quase todos os governos do mundo se comprometeram a erradicar a escravidão moderna por meio de suas legislações e políticas nacionais”, o processo “estagnou” desde 2018. 

Estamos ligados à escravidão contemporânea através dos produtos que compramos

A magnitude da escravidão contemporânea não é um fenômeno naturalmente dado. Por se tratar de um fenômeno social, a escravidão se manifesta por meio das condições que permitem a sua existência. Falhas em processos de fiscalização e precarização generalizada das condições de trabalho, por exemplo, entram na conta. Entretanto, para que ela exista, é preciso que atores econômicos a sustentem: pessoas trabalham em condições escravas para produzir, e esses produtos são consumidos.

O estudo aponta uma relação causal marcante da lógica de demanda e oferta do sistema econômico prevalecente na maior parte do mundo contemporâneo: o trabalho escravo prevalece em países de baixa renda e está ligado à demanda de países de alta renda.

Em 2021 – ano-base para o estudo – os países que compõem o G20 (inclusive, o Brasil) importaram 468 bilhões de dólares em mercadorias que, ao serem produzidas, tinham algum risco de estarem ligadas ao trabalho escravo. Esse número pode ser dividido, inclusive, por setores. A maior parte desse valor vem de eletrônicos (243,6 bilhões de dólares) e de roupas e têxteis (160,6 bilhões de dólares).

Segundo a Walk Free, os Estados Unidos, primeiro colocado nesse ranking específico, importaram 170 bilhões de dólares em produtos dessa natureza, um valor que é mais que o triplo do segundo colocado, o Japão (53 bilhões). Em terceiro lugar, aparece a Alemanha (44 bilhões).  

O Brasil ocupa a 15ª posição. De acordo com o estudo, o país importou 5,6 bilhões de dólares de produtos com risco de relação com o trabalho escravo, o que envolve, além dos setores citados, óleo de palma e painéis solares. As principais importações brasileiras vêm de países como a China, a Indonésia e Bangladesh. 

Segundo a publicação, o Brasil é, também, origem de produtos feitos com trabalho escravo, notadamente café, cana-de-açúcar, madeira, carne bovina e roupas.

A Walk Free conclui o estudo demandando ações imediatas dos governos. No caso brasileiro, há um destaque positivo para a “Lista Suja do Trabalho Escravo”, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A lista foi criada em 2003 e chegou a ser suspensa em 2014. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade da ação. 

Na versão mais recente da Lista Suja, publicada no início de abril, o MTE acrescentou 132 nomes à lista de empregadores brasileiros que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão. No total, atualmente, 289 empregadores estão ligados à prática.

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