Política

Como funciona o negócio de exploração imobiliária das milícias no Rio

Inquéritos mostram milicianos envolvidos em grilarem, remoção forçada de moradores, obras e até corretagem imobiliária

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Nos anos 80 e 90, diversos bairros e comunidades do Rio de Janeiro testemunharam a formação de grupos de moradores, quase sempre compostos por policiais militares, civis, penais e bombeiros, sob a bandeira de combater o tráfico e a violência nessas localidades.

Nasciam ali o embrião do que viria a ser nomeado, nos anos 2000, como milícia. Esses grupos ganharam a aceitação nas comunidades, sob a vista grossa do Estado à violência e extorsão na cobrança das chamadas ‘taxas de segurança’.

Com o tempo, essa tolerância se transformou em favorecimento explícito. Beneficiando-se da redução das operações policiais em suas áreas de controle, as milícias expandiram suas atividades, incluindo empreendimentos imobiliários.

A expansão e exploração imobiliária é hoje um dos principais braços financeiros do crime organizado carioca, com a milícia capitalizando sobre as necessidades habitacionais da população desassistida pelo Estado. Empresas de fachad, como bares e lojas de materiais de construção, são usadas para lavar o dinheiro obtido ilegalmente..

Ao entender que, nas áreas dominadas, havia alta demanda de moradores que queriam sair do aluguel, mas não poderiam arcar com financiamento de imóveis, as milícias abraçaram este novo mercado – oferecendo, por exemplo, prazos de parcelamento mais amplos que o dos bancos.

Um levantamento pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense e pelo Observatório das Metrópoles aponta que que a regularização de imóveis irregulares pela prefeitura tem favorecido a expansão imobiliária miliciana, que manipula o poder público para obter alvarás e autorizações para construção.

Essa atuação, marcada por corrupção e violência, tem chamado a atenção após trágicos eventos, como o desabamento de um edifício na Muzema em 2019, causando a morte de 24 pessoas. As investigações deste e de outros casos apontam o envolvimento de milicianos em grilarem, remoção forçada de moradores, obras e até corretagem imobiliária.

Apenas em 2021, o Disque Denúncia, recebeu 555 chamados sobre construções irregulares em todo o estado do Rio. O maior número de denúncias está justamente relacionado com a zona oeste da capital, berço dos milicianos.

Diante da falta de terrenos para construção na zona oeste, os grupos começaram a avançar também sobre áreas de proteção ambiental, desmatadas para a abertura de loteamento ou utilizadas para uma nova expansão comercial: a extração de pedra e saibro, para abastecer as construções ilegais.

Os milicianos também acusados de remoção violenta de moradores de conjuntos residenciais do programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida. Eles se apropriam do imóvel para venda e aluguel.

Além das operações de despejo, um inquérito de 2016 apura que milicianos, trajados de uniformes da prefeitura, retiraram moradores e derrubaram imóveis em um condomínio de classe média de Santa Cruz. A investigação apura a possibilidade da ação clandestina ter sido praticado por grupos paramilitares interessados na venda dos terrenos agora desocupados.

Além dos lucros com a venda dos imóveis, os grupos ainda lucram com a expansão de suas comunidades. Em uma lógica simples, quanto mais moradores, mais pagantes da taxa de proteção, mais serão os contratantes dos serviços de gatonet, mais vendas de botijão, em um ciclo interminável de obtenção de lucro.

Dados da prefeitura do Rio mostram que, entre 2021 e 2022, mais de 1.300 construções irregulares ligadas a milícia foram demolidas. A destruição dos imóveis teria causado um prejuízo de 646 milhões de reais para os criminosos.

Milícias e os políticos

Em 2008, a Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia do Rio de Janeiro que investigava a atuação de milícias indiciou mais de 250 pessoas envolvidas em atividades criminosas, principalmente relacionadas com a extorsão de comunidades vulneráveis e de baixa renda.

Para além do retorno financeiro, as milícias também se tornaram meios de se obter capital político.

Ao garantir segurança e entrada de serviços em favelas e comunidades, os líderes da milícia acabam ganhando a afeição da população. E quando se candidatam a cargos públicos, acabam se elegendo. Começa ai uma relação entre Estado e “estado paralelo” muito mais próxima do que se podia imaginar.

Como se pode imaginar, não é raro que os milicianos candidatos nas eleições proíbam campanhas eleitorais de opositores por meio da violência, transmutando a democracia e reinstituindo o voto de cabresto para aquela população.

Se não forem eleitos, é de se esperar o corte de benefícios, serviços e aumento das taxas cobradas pela milícia aos moradores da região, que agora permanecem em uma relação edipiana com seus sequestradores.

Conexão com o caso Marielle Franco

A vereadora do PSOL, Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes, foram executados em 14 de março de 2018, na cidade do Rio de Janeiro.

O ex-policial militar Ronnie Lessa teria afirmado, em delação premiada, que o assassinato está relacionado com as milícias que atuam no estado, citando inclusive o nome de parlamentares como supostos mandantes do crime.

Há a suspeita de que Marielle tenha entrado no radar da milícia ao se opor ao uso de um terreno em Jacarepaguá. Marielle lutava politicamente para que o terreno em Jacarepaguá fosse destinado a pessoas de baixa renda, para moradia popular. Os milicianos, por sua vez, atuavam para que a área não atendesse os interesses sociais e fosse usada para especulação imobiliária.

A vereadora ainda dava apoio a um coletivo de mulheres que lutava contra a verticalização da comunidade de Rio das Pedras, um projeto proposto pela prefeitura do Rio.

Segundo relatos, as desapropriações de imóveis para obras de saneamento básico no local não agradavam os milicianos, proprietários desses imóveis. Após pressão, a prefeitura desistiu do plano.

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