Sociedade

De choques a comida estragada: as condições impostas a trabalhadores em vinícolas gaúchas

Mais de 200 foram resgatados em operação nesta semana; eles estavam alojados em um prédio onde as condições de higiene eram precárias

Situação de escravidão: espaço onde ficavam trabalhadores em Bento Gonçalves. Foto: Divulgação/Polícia Rodoviária Federal
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Situada na Serra Gaúcha, a pouco mais de 120 quilômetros de Porto Alegre, a cidade de Bento Gonçalves integra a região responsável por mais de 90% da produção nacional de vinho.

Um documento elaborado pela prefeitura de “Bento” —, como os gaúchos a chamam — aponta que o município “encerrou 2022 com saldo positivo da geração de emprego”. Essas estatísticas, porém, teriam sido infladas graças a um esquema de trabalho análogo à escravidão.

É o que aponta  uma operação coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, com apoio da PF e da PRF, deflagrada na última quarta-feira 22.

A denúncia partiu de um grupo de trabalhadores temporários que conseguiu fugir do alojamento e procurou os agentes da PRF. Eles prestavam serviços às vinícolas, Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.

O grupo, de mais de 200 trabalhadores, conta ter sido trazido de Salvador para trabalhar no período de colheita da safra de uvas, sob a promessa de salários de 3 mil reais, mais alimentação e alojamento. Ao chegar ao Rio Grande do Sul, no início de fevereiro, descobriram que se tratava de uma farsa nada. A jornada de trabalho começava às 5h e se estendia até as 20h, com direito a descanso semanal apenas no sábado. A comida estava estragada. As compras pessoais só podiam ser feitas em determinado comércio, onde os preços abusivos seriam descontados no salário ao final do mês.

Eles contaram, ainda, que foram submetidos a choques elétricos. Na sexta 24, o gerente regional do Ministério do Trabalho e Emprego em Caxias do Sul, Vanius Corte, afirmou ao G1 que a fiscalização apreendeu “uma máquina de choque elétrico e spray de pimenta que era usado contra os empregados que reclamavam da situação”.

O alojamento, em um prédio, também era precário. Colchões e camas tinham péssimo estado de conservação e não havia troca de lençóis. A falta de ventilação e o excesso de pessoas nos quartos provocava mau cheiro. Agora, os trabalhadores estão acomodados em um ginásio de esportes da cidade.

Um dos trabalhadores denunciantes contou que desde os primeiros dias era possível notar o descaso e o abandono. “Mas relevamos, achando que poderia melhorar.” Conforme as semanas se passavam e nada acontecia, ele decidiu gravar uma denúncia em vídeo, que compartilhou com amigos via Whatsapp. A partir de então, o homem passou a ser ameaçado pelos aliciadores, chamados comumente de ‘gatos’. “Tomei cadeirada, spray de pimenta.”, desabafou. Foi quando resolveu fugir para fazer a denúncia. “Vai existir escravo de novo? Não vai. No que depender de mim, não vai. Eu vou abrir a boca, eu vou falar que tá errado.”

O responsável pela empresa que trouxe os baianos — que há anos atua como intermediário na contratação de mão de obra para trazer ao Rio Grande do Sul — chegou a ser preso durante a operação, mas foi liberado após o pagamento de fiança no valor de 39.060 reais. Seu nome não foi divulgado.

Por meio de notas, as vinícolas usaram argumentos de defesa bastante semelhantes. Afirmaram que a responsabilidade pela contratação da mão de obra era de uma empresa terceirizada, e que não tinham conhecimento da situação dos trabalhadores. Também reafirmaram seus compromissos com os direitos trabalhistas e prometeram colaborar com as investigações. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, as vinícolas poderão ser responsabilizadas pelo pagamento dos direitos trabalhistas daqueles que viveram a situação.

Para a deputada estadual Luciana Genro (PSOL),  a investigação precisa ir além da preocupação de punir apenas o responsável pela contratação direta dos trabalhadores. “Não se pode abstrair que existem empresas que se beneficiam deste trabalho, mas olham de lado e fingem que não sabem o que acontece.”

Genro reapresentou à Assembleia Legislativa um projeto (não aprovado pela Casa na legislatura anterior) que propõe o cancelamento de registro no cadastro do ICMS das empresas contratantes de mão de obra submetida ao trabalho análogo à escravidão ou à exploração do trabalho infantil, assim como das empresas beneficiadas.

“Trata-se de uma forma eficaz de evitar a existência desse tipo de escravidão, forçando inclusive as contratantes a fiscalizarem como essa mão de obra esta sendo tratada”, defende a deputada.

CartaCapital questionou as vinícolas citadas na denúncia. Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Salton manifestou repúdio “a qualquer ato de violação dos direitos humanos e trabalhos”, admitiu que errou pela “não averiguação in loco das condições oferecidas aos trabalhadores” e informou que está “tomando as medidas cabíveis frente ao tema”. As demais não responderam.

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