Saúde

Por que o passaporte da vacina para a Covid-19 divide opiniões?

A medida passa a valer nesta quarta-feira na cidade de São Paulo em eventos com mais de 500 pessoas. Será exigida ao menos uma dose vacinal

Créditos: Reprodução Prefeitura de Jundiaí/ Via Fotógrafos PMJ Créditos: Reprodução Prefeitura de Jundiaí/ Via Fotógrafos PMJ
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Com o fim da quarentena e a liberação das atividades econômicas sem restrições de horário e público, algumas cidades têm apostado no passaporte da vacina da Covid-19 para estimular a sociedade a completar o seu ciclo de imunização. A circulação de pessoas em determinados locais e eventos será condicionada à comprovação de ao menos uma dose da vacina. Na cidade de São Paulo, a medida passa a valer nesta quarta-feira 31 para eventos com mais de 500 pessoas. A efetividade da medida, porém, não é unanimidade entre pesquisadores e cientistas. Exigir comprovação sem que a vacinação tenha avançado a duas doses por pessoa poderia provocar uma falsa sensação de segurança e estimular a circulação desprotegida.

Especialistas ouvidos por CartaCapital concordam em um ponto: o passaporte vacinal não fere a liberdade individual. Deputados bolsonaristas têm se apropriado dessa tese para tentar barrar o passaporte judicialmente. No dia 24 de agosto, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) anunciou que protocolaria uma ação no Tribunal de Justiça do Estado uma vez que o passaporte seria uma ‘restrição do direito de ir e vir’ e que poderia ‘abrir a porteira’ para outras restrições.

 

Para o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado não há nada de ilegal em cobrar o passaporte sanitário, ‘essa seria a forma dos governos estabelecerem a vacinação obrigatória, na prática’, conforme destacou em coluna publicada por CartaCapital. O autor relembrou que as justificativas contra a medida são as mesmas utilizadas pelos primeiros movimentos antivacinas surgidos na Europa no século XIX.

“Não há direito absoluto. Os direitos individuais de liberdade e propriedade podem ser limitados em prol do bem-estar coletivo”, explicou o pesquisador, que faz ponderações sobre o atual momento da pandemia e a cobrança pelo passaporte vacinal.

“O passaporte da vacina é legal, correto, mas é importante lembrar que vacinação obrigatória é, antes de tudo, obrigação do Estado. Só pode ser exigido passaporte a partir do momento em que o governo garantir vacinas suficientes para imunização completa (2 doses) de todos”, escreveu.

Até a segunda-feira 30, o Brasil tinha 60,95% de sua população vacinada com a primeira dose da vacina, e 28,67% com as duas doses (ou dose única) dos imunizantes, segundo mapa de vacinação feito pelo G1.

O infectologista Marcos Boulos também defende a adoção do passaporte, mas apenas em contexto em que as pessoas já tenham completado o seu ciclo de vacinação. “Com uma dose só não adianta nada, não surte efeito nenhum, faz sentido se tivermos falando de pessoas que tomaram dose única, caso da Janssen, ou tomaram as duas doses”, reforça.

Cidades projetam passaporte com, no mínimo, uma dose da vacina

Esse, no entanto, não é o caminho que tem sido trilhado pelas cidades. Em São Paulo, o passaporte passa a valer a partir desta quarta-feira 1 para eventos que tiverem mais de 500 pessoas, como shows, feiras, congressos e jogos. Os cidadãos terão que apresentar ao menos uma dose da vacina para garantir a entrada.

“Será exigida, no mínimo, a comprovação da primeira dose da vacina”, grafa o decreto do dia 28 de agosto da Prefeitura de São Paulo. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) chegou a cogitar aplicar a medida em estabelecimentos comerciais como bares, restaurantes e shoppings, mas recuou por ora. O texto do decreto, no entanto, recomenda que esses locais também peçam a comprovação vacinal.

Ainda de acordo com a decisão, os setores que não cumprirem a determinação ficarão sujeitos às penalidades previstas no Decreto nº 59.298, de 23 de março de 2020, que estabelece multa e até interdição do local.

Na cidade do Rio de Janeiro, o passaporte vacinal, que passaria a vigorar também nesta quarta-feira, foi adiado para o próximo dia 15 de setembro. A prefeitura chegou a publicar um decreto mais rígido, no qual mencionava a exigência da comprovação vacinal para acesso a ambientes de uso coletivo na cidade, tais como academias, cinemas e clubes.

Na terça-feira 30, ao afirmar o adiamento da medida, a prefeitura disse em nota que no período de 1º a 14 de setembro “será realizada uma série de ações educativas com o setor regulado e essa cobrança pode ser iniciada por cada setor que já se sinta preparado e queira estimular a vacinação”.

Em Curitiba, o vereador Dalton Borba (PDT) protocolou uma proposta que prevê barrar o acesso a estabelecimentos públicos e privados a quem não for vacinado, exclusivamente nos períodos mais severos da pandemia. Para o autor da proposta, isso evitaria que os estabelecimentos tivessem que fechar nos períodos mais severos de infecção, como nos casos de lockdown, ao permitirem somente a entrada de imunizados. O projeto, que sofre oposição e entidades do comércio e turismo, está em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal.

Pneumologista teme ‘falsa sensação de segurança’

O médico pneumologista Frederico Fernandes, presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia, é contra o passaporte vacinal como política pública. “Não por ser algo que atente contra a liberdade, como alguns vem dizendo. Acho que a vacinação da Covid-19 tem sim de ser obrigatória, não se trata de uma escolha individual, mas sim de um ato coletivo para que possamos chegar à imunização necessária”, pondera.

Ainda assim, o especialista considera a medida ‘ineficiente e até contraproducente’. “Ao implementar qualquer política pública, temos que pensar qual é o problema que ela está tentando resolver. E um passaporte vacinal como esse, restringindo a circulação de pessoas não vacinadas, tenta resolver um problema de alcance da campanha de vacinação”, coloca, ao enfatizar que o País não tem um percentual expressivo da sociedade que não quer se vacinar.

“Não vejo isso como um problema no Brasil, são raras as pessoas que não querem se vacinar, tanto que conseguimos uma cobertura maior do que 90% em relação às idades que participaram do Programa Nacional de Imunização”, explica, ao defender que os custos para implementação de um passaporte (de checagem e fiscalização) poderiam ser revertidos em campanhas oficiais, ainda ineficientes, e medidas como distribuição de máscaras eficientes a quem usa transporte público. “Precisamos comunicar o benefício das vacinas, como as pessoas devem proceder, agora, com a dose de reforço, explicar quem serão os grupos envolvidos, qual será a estratégia adotada“, defende.

Outro ponto de preocupação do especialista é a ‘falsa sensação de segurança’ que as pessoas podem criar em estabelecimentos públicos, depois de apresentarem o passaporte vacinal, descuidando de medidas sanitárias essenciais sobretudo diante à variante Delta, mais transmissível.

“O que pode passar na cabeça das pessoas? Tenho o passaporte, então relaxo com o uso de máscaras e distanciamento, promovo aglomerações. O que temos notado, com a variante Delta, é a circulação do vírus mesmo em indivíduos já vacinados. A vacina continua protegendo contra formas graves, mas aquela ideia de que quem tomou vacina não tem possibilidade de se infectar e transmitir, não é fato. As pessoas vacinadas podem sim se infectar e transmitir, o que faz com que essa história do passaporte vacinal tenha ainda menos peso o controle da pandemia”, explica.

Nesse ponto, Frederico Fernandes entende que o passaporte vacinal pode funcionar como ‘cosmética’ e jogar contra as medidas que efetivamente surtem efeito na dispersão do vírus. “Que tipo de proteção as pessoas terão em um show, aglomeradas, sem usar máscaras corretamente? Nenhuma. É como medir a temperatura no pulso, além de não funcionar, temos que considerar que o vírus se espalha antes mesmo das pessoas apresentarem sintomas”.

“As pessoas terem esse passaporte, sem proteção adequada, num ambiente de aglomeração, é sem duvida muito pior do que se ter um controle com máscara e distanciamento efetivo”, defende.

Doria virou as costas para a ciência, diz Marcos Boulos

No caso da adoção do passaporte vacinal, não há uma recomendação expressa por parte dos estados, ficando a medida a cargo das prefeituras. Ainda assim, os especialistas questionam a retomada sem restrições das atividades comerciais como aconteceu no estado de São Paulo, desde que o decreto da quarentena deixou de valer no dia 16 de agosto.

No dia seguinte à flexibilização, em 17 de agosto, o governador João Doria dissolveu o Centro de Contingência da Covid, que chegou a contar com 21 integrantes que apoiavam o governo a pensar as fases de flexibilização com base em evidências sanitárias. Agora, o núcleo é composto por sete integrantes: João Gabbardo, Paulo Menezes, David Uip, José Medina, Geraldo Reple, Carlos Carvalho e Luiz Carlos Pereira Junior.

“Eu mesmo cheguei a pedir isso para o coordenador do centro, já que fazíamos as discussões, elas não eram atendidas pelo governador, e víamos as consequências acontecendo, pessoas morrendo muito mais do que deviam”, relatou à reportagem o infectologista Marcos Boulos que fez parte da composição inicial do grupo.

Ele [João Doria] virou as costas para a Ciência quando parou de seguir as normas sanitárias. Acho absolutamente inapropriada essa liberação total, nós sempre nos posicionamos contras e as liberações foram acontecendo a despeito disso, as últimas nem passaram pelo Centro”, afirmou.

Para o infectologista, é esperado que haja o aumento de casos de infecção em São Paulo em setembro, à luz do que já vem ocorrendo no Rio de Janeiro, epicentro da nova variante. O cenário pode fazer com que o governo retroceda na liberação das atividades.

O Brasil já passou dos 1.500 casos de Covid originados pela nova variante: são 1.573 segundo balanço divulgado pelo Ministério da Saúde no domingo 29, a partir das notificações das secretarias estaduais. Até a data, a cepa originária da Índia se fazia presente em 18 estados e no Distrito Federal.

O Estado de São Paulo afirma ter 764 casos da Delta no total, sendo a cidade de Jaguariúna, com 19 ocorrências, a que mais registra casos da variante, segundo levantamento feito pela Secretaria de estado da Saúde ao G1 na terça-feira 31. A capital tem oito casos, o mesmo número identificado em Campinas. Mogi-Guaçu registrou 7 casos da Delta e Hortolândia 6.

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