Daniel Dourado
[email protected]Médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.
Do ponto de vista jurídico, essa questão já está resolvida há mais de um século nas democracias ocidentais
Nos últimos dias, milhares de manifestantes saíram às ruas em várias cidades da França contra o que chamam de “ditadura da vacina”. É bem possível que sejam vistas manifestações semelhantes em outros países nos próximos meses.
Mas não há nada de ditatorial nas medidas que têm revoltado essas pessoas.
O governo francês anunciou a obrigatoriedade de apresentação do chamado “passaporte sanitário” para atividades culturais e de lazer. Isso faz parte da entrada em vigor do certificado digital adotado na União Europeia e que passa a ser exigido em todos os países do bloco para viagens e acesso a locais públicos a partir de julho de 2021. O cidadão precisa comprovar que foi vacinado contra a Covid-19, que se recuperou da doença nos últimos meses ou que tem teste negativo feito nos dias anteriores.
Na prática, a exigência desse tipo de certificado é a forma como os governos estabelecem a vacinação obrigatória. As pessoas não são diretamente obrigadas a se vacinar, mas perdem o direito de frequentar determinados ambientes se optarem por não o fazer. E é exatamente esse o argumento dos contrários à determinação. Alegam que ela fere a liberdade individual.
Esse argumento não é novo. Há registros do uso dessas mesmas justificativas pelos primeiros movimentos antivacina surgidos na Europa no século XIX, quando a vacinação obrigatória contra a varíola foi estabelecida em muitos países. No Brasil, o ataque contra direitos e liberdades individuais foi usado como pretexto pelos opositores da primeira lei nesse sentido aprovada no país em 1904, embora não tenha sido a principal motivação da Revolta da Vacina.
Do ponto de vista jurídico, essa questão já está resolvida há mais de um século nas democracias ocidentais. A ideia de que a liberdade individual pode ser restringida pela obrigatoriedade de se vacinar para proteger a saúde pública foi reconhecida no começo do século XX pela Suprema Corte dos EUA (caso Jacobson v. Massachusetts, 1905).
A lógica é a mesma presente em inúmeras leis. Não há direito absoluto. Os direitos individuais de liberdade e propriedade podem ser limitados em prol do bem-estar coletivo. Muitos países usaram a vacinação obrigatória como uma estratégia bem-sucedida que deu condições para a erradicação da varíola, uma das doenças que mais matou seres humanos na História.
No Brasil, vacinas obrigatórias estão atualmente previstas pela lei do Programa Nacional de Imunizações e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Os calendários de imunização estabelecidos pelo ministério da Saúde definem vacinas obrigatórias por idade e podem ser complementados por estados e municípios. Os atestados de vacinação devem ser exigidos em situações como pagamento de salário-família, recebimento de benefícios sociais, matrícula escolar, contratação trabalhista e alistamento militar.
Isso já é assim há bastante tempo, mas o tema recentemente voltou ao debate público por conta da previsão legal de vacinação compulsória contra a Covid-19. Em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou que os preceitos gerais sobre imunização se aplicam na pandemia, deixando bem claro que vacinação obrigatória não significa vacinação forçada. A compulsoriedade da imunização pode ser determinada pelos governos por meio de restrições indiretas, da mesma forma que é feito para as demais vacinas.
Vale dizer que a obrigação é, em primeiro lugar, do Estado. Antes os governos têm que garantir que haja vacinas disponíveis para distribuição gratuita e igualitária a toda a população. Só a partir daí é que faz sentido falar em vacinação compulsória. A imunização é política pública e ser vacinado é um direito do cidadão.
E aqui entra um ponto fundamental. Trata-se de um direito que precisa ser exercido pelo maior número possível de pessoas para que o resultado efetivo seja atingido. Se até o final de 2020 falávamos em meta em torno de 70% da população vacinada para controlar a epidemia, com a chegada das variantes mais transmissíveis, o objetivo para alcançar a esperada imunidade coletiva deve subir para 80-85%.
Por isso, além de campanhas com comunicação clara e direta, os governos devem lançar mão de recursos para incentivar as pessoas a buscarem se vacinar, seja sorteando prêmios – como tem sido feito na Polônia – seja pela exigência dos certificados ou passaportes sanitários.
O lado positivo é que os movimentos antivacina representam uma minoria. Na França, apesar dos manifestantes fazerem bastante barulho, mais de 75% da população é favorável à vacinação obrigatória. No Brasil, as últimas pesquisas mostram que acima de 90% das pessoas querem se vacinar contra Covid-19.
Então, é hora de exercer o direito de ser vacinado. Pelo bem de todos.
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