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A UE só vale para os ricos

Os povos do velho mundo sentem na carne os prejuízos do neoliberalismo

Coletes amarelos em Paris (Foto: Lucas Barioulet/AFP)
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As violentas manifestações dos coletes amarelos esmorecem. Gás lacrimogêneo, manifestantes arremessando pedras na polícia, altercações, tanques de guerra nos Champs-Élysées, esqueletos de automóveis queimados França afora. Balanço: quatro mortos, centenas de feridos. Na estrada de Paris a Lyon barricadas saúdam os motoristas, especialmente os de caminhão, todos a trajar coletes amarelos. Buzinadas.

O presidente Emmanuel Macron revogou um novo imposto sobre o combustível que deu início à revolta dos coletes amarelos neste mês de dezembro – e aumentou o salário mínimo em 100 euros líquidos. O assassinato de três pessoas em um mercado de Estrasburgo por Cherif Chekatt na terça-feira 11, também contribuiu para o fim – pausa? – da violência. “A questão é saber se estamos no começo ou no fim de uma sequência”, resume o cientista político Preud’homme, do instituto Viva Voce.

Com o mais baixo índice de popularidade (24%), Macron é a última esperança do establishment nas eleições ao Parlamento Europeu de 26 de maio de 2019. Paira no ar o temor da vitória de siglas neofascistas de, entre outros, Matteo Salvini e Marine Le Pen. Europeus assustam-se com a narrativa catastrofista de Salvini e Le Pen sobre a crise financeira, o terrorismo e a imigração. Durante o pleito presidencial francês 18 meses atrás, Macron prometeu aprofundar a construção europeia e criar novas instituições supranacionais, a começar por aquela que controla o orçamento da União Europeia.

Macron preenche o posto dominante na UE liberal da chanceler conservadora Angela Merkel, com a qual gostaria de dar continuidade ao tradicional eixo franco-alemão. No entanto, o enfraquecimento de Merkel decorre das relações estremecidas no seio da coalizão da União Cristã Democrata, seu partido, e a União Social Cristã CDU/CSU, que tenta levar Merkel, após 12 anos como chanceler, a adotar uma política econômica mais à direita.

Ao mesmo tempo, em um pleito de 2017 foi a primeira vez que o xenófobo partido de extrema-direita, Alternativa para a Alemanha (AfD), entrou no Parlamento alemão desde a Segunda Guerra Mundial. Tornou-se, assim, a terceira força política no país, graças ao fato de, em 2015, Merkel ter permitido a entrada de 1 milhão de refugiados na Alemanha. Por sua vez, o Partido Social-Democrata recusou-se a fazer parte de qualquer aliança.

Enquanto isso, Macron, que se diz de centro, revela-se um camaleão liberal. Em 9 de julho de 2018 fez um discurso em Versalhes, no qual defende a igualdade como um direito à participação da economia. “A primeira das desigualdades é aquela do destino.” Em miúdos, o Estado não precisa “corrigir” diferenças de receitas que, na verdade, não passam de diferenças de competências de cada cidadão. À época do discurso em Versalhes, um jovem disse-lhe estar desempregado. Macron convidou-o a atravessar a rua e pedir um emprego de garçom. Ou seja, o mercado, não o Estado, dita as regras do jogo.

Macron realizou reformas de austeridade para satisfazer as elites francesas e da União Europeia.

Por exemplo, suprimiu o Imposto Sobre a Fortuna (ISF), ou seja, 3 bilhões de euros foram poupados a bem dos ricaços franceses. Despesas públicas foram cortadas para elevar o déficit orçamentário abaixo dos 3% requeridos pela UE. Por essas e outras, em maio de 2019 as eleições para o Parlamento Europeu são preocupantes em um momento no qual a narrativa de vários políticos sobre, por exemplo, o neoliberalismo, lembra aquela da extremista Marine Le Pen.

Na Itália, desponta a liderança de Matteo Salvini, ministro do Interior e chefe da Liga, a ex-Liga Lombarda neofascista. Salvini passou da extrema-esquerda para a extrema-direita, a tornar nacional o seu partido. Por tabela, sua crença de que os sulistas “cheiram mal”, como Salvini propalava, dissolveu-se no ar da nova linha. Ainda neste ano, o ministro do Interior ganhou fama na EU, quando impediu o desembarque de imigrantes na Itália, forçando a tripulação do barco a levá-los para a Espanha. Ele também usou o desabamento da ponte de Gênova para denunciar a austeridade e os limites do orçamento da União Europeia.

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O euro, acrescentou Salvini, “é um crime contra a humanidade”. Nápoles perdeu a etiqueta de inimigo para Bruxelas. Ao mesmo tempo, Salvini tenta, como Macron, seduzir a direita dita moderada.

O discurso contra o euro e anti-imigração funciona, caso contrário como explicar o fato de a economia italiana estar nos eixos?

Trata-se da segunda economia manufatureira da UE e contribui segundo as normas a Bruxelas. Os italianos têm maior fortuna privada que os alemães e a dívida global do porcentual do Produto Interno Bruto é de um país do G-7. O ceticismo italiano deve-se a associações catastrofistas com a União Europeia.

Em 2016, os eurocéticos britânicos igualmente impulsionados por forças populistas e xenófobas optaram em largar as amarras da União Europeia no árduo processo do Brexit, êxito dos britânicos da União Europeia. E com a saída do tablado político da chanceler Merkel, Emmanuel Macron, vale lembrar, é a nova força neoliberal da UE. O caso dos impostos dos coletes amarelos remonta ao final da Primeira Guerra Mundial, quando as massas passaram a ser mantidas afastadas do novo imposto progressivo, escreve Alexis Spire, do Le Monde Diplomatique.

Essa “injustiça fiscal continua a ocupar um lugar marginal no movimento trabalhista em relação a reivindicações salariais ou de defesa do emprego”. Profissionais liberais e desempregados representam uma larga fatia da massa dos coletes amarelos. A União Europeia passa pela mesma transição.

Coletes amarelos na França (Foto: Sylvain Thomas/AFP)

Desde a sua introdução, a UE tem sido um projeto das elites. Medidas econômicas neoliberais visam aprofundar o alcance do mercado por meio de liberalização, privatização e flexibilização. O emprego e a proteção social estão subordinados a objetivos de inflação baixa, redução de dívidas e aumento da competitividade. Desde os anos 1970, movimentos militantes keynesianos de redistribuição foram abandonados em nome da competitividade, por meio de programas de austeridade fiscal.

Segundo o economista Bill Mitchell, no contexto neoliberal os cidadãos têm menos poder de barganha, são despolitizados e, assim, tornam-se apáticos. Ou deveriam tornar-se mais apáticos. Esse caminho rumo a uma antidemocracia europeia ocorre “através da remoção de políticas macroeconômicas no Parlamento, por intermédio de um banco independente de governos, e, assim, isolando a transição neoliberal longe de contestações populares”.

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Cidadãos da União Europeia não podem, por exemplo, emendar medidas econômicas a não ser através de tratados. Pontificou o próprio presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, durante a crise da Grécia: “Não há escolhas democráticas contra tratados da UE. Os tratados podem apenas ser rejeitados”.

Durante sua campanha presidencial, vale anotar, Macron, o europeísta, afirmou que a Eurozona deveria ter um ministro das Finanças e do Orçamento comum e um fundo comum para financiar os projetos de investimento. Nações-Estados viram o “mercado único” da UE transformar-se em uma barreira contra direitos trabalhistas e partidos de centro-esquerda e de esquerda.

Segundo a socióloga Camille Peugny, os coletes amarelos marcam a volta da demarcação entre as classes sociais.

Isso em uma França e uma Europa onde reina o neoliberalismo, e a Europa econômica prevalece sobre a social. Seria uma falácia dizer que os ricos estão nos centros urbanos e os menos endinheirados no campo. Existem bolsões de riqueza e pobreza em todos os cantos, como em Varsóvia e Paris. Com a uberização e a precariedade do trabalho a distância “é nas barricadas que o povo se reencontra para manifestar a sua cólera”.

No seu manifesto, Yanis Varoufakis, o ex-ministro grego das Finanças, escreve: “Vivemos em uma Europa em vias de se desintegrar. É o caso da Grécia, da Itália e de racistas populistas, como na sociedade alemã”. O economista sublinha: “A UE precisa ser democratizada, para não se desintegrar”. A fim de criar uma UE progressista, Varoufakis propõe o programa do economista Thomas Piketty. Uma Eurozona comum financiada por impostos corporativos harmonizados, a ser transferidos a países pobres na forma de investimento, pesquisa e gastos sociais; uma Câmara parlamentar híbrida, entre outras medidas. Pondera Varoufakis: “A intenção de fazer ricos e poluidores pagarem impostos mais elevados para financiar inovação, migrantes e uma transição verde é admirável”, mas não suficiente para lidar com a atual crise.

Ao se demitir do Ministério de Finanças, quando negociava a dívida grega em 2016 com a UE, Varoufakis fundou o Democracy in Europe Movement 2015 (DiEM25), para lutar contra o ministro italiano Matteo Salvini, Marine Le Pen e outros como Angela Merkel e o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. “Inimigos parecem amigos” na UE, alega Varoufakis. Salvini precisa de Merkel e Juncker assim como os dois precisam de Salvini.” Em suma, Salvini precisa de Merkel e de Juncker para explicar a incompetência neoliberal da União Europeia.

Entre as siglas no poder de países da UE constam o Fidesz, do premiê Viktor Orbán, na Hungria, e PiS (Lei e Justiça), de Jaroslaw Kaczynski, na Polônia. Algumas das controversas políticas na Polônia, desde as eleições de 2015, foram o controle da mídia estatal e as reformas judiciais para permitir ao governo apontar e demitir juízes.

Outra medida foi a de punir indivíduos que acusem elos históricos da Polônia com o Holocausto. Na Andaluzia, a formação extremista Vox ganhou as eleições. República Tcheca, Eslováquia, Dinamarca e Finlândia também são redutos de formações extremistas. Outras siglas de extrema-direita preocupantes para a UE são o Partido da Liberdade da Suécia, de Geert Wilders, e o Partido da Liberdade da Áustria.

Na Praça Bellecour, no centro de Lyon, Ginette Ranchoux, uma dona de casa de 80 anos, diz estar preocupada com a crise dos imigrantes e o terrorismo, que poderão influenciar a vitória de extremistas no pleito ao Parlamento Europeu em 2019. “A União Europeia precisa nos proteger, nos dar mais segurança social”, argumenta.

“Tudo é possível”, continua Ginette, afável filha de mãe resistente durante a Segunda Guerra Mundial. A União Europeia “é fundamental também para lidar com países como os Estados Unidos, a China e a Rússia”, opina André, marido de Ginette e empresário aposentado de 81 anos. Segundo André, a UE precisa dar à Europa uma “personalidade”, pois “somos todos irmãos”. Isso no sentido econômico, político e social.

Ginette e André votaram em Emmanuel Macron em 2017 para, a exemplo de outros conterrâneos, evitar a ascensão da extremista Marine Le Pen à Presidência. Para o casal, instalado abaixo da imponente estátua de Luís XIV, ainda é cedo para julgar Macron. “Levou tempo para ele reagir aos coletes amarelos, mas quando o fez cedeu”, diz Ginette. Ela acrescenta: “Mas não nos esqueçamos de que Macron é um banqueiro”. Um lembrete para maio de 2019.

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