Política

STF decide se guardas municipais são órgãos de segurança pública. O que está em jogo?

Governo aguarda decisão e defende ampliação de poderes da corporação; juristas divergem sobre aumento de violência

Cristiano Zanin e Flávio Dino em cerimônia no STF. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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O Supremo Tribunal Federal reabre nesta sexta-feira 18 o julgamento de uma ação que discute se as guardas municipais fazem parte dos órgãos de segurança pública. O processo trata da interpretação sobre o Artigo 144 da Constituição Federal, que define quais são as corporações que integram as forças de segurança no Brasil e não menciona as guardas municipais.

Conforme mostrou CartaCapital, o pano de fundo desse processo é o interesse do governo federal em ampliar o papel das guardas municipais, intenção já vocalizada pelo próprio presidente Lula (PT).

A forma como o texto está escrito abre margem para que decisões judiciais não reconheçam as guardas municipais como órgãos de segurança pública, e sim como corporações destinadas apenas à proteção de bens, serviços e instalações.

Autora da ação, a Associação das Guardas Municipais do Brasil acionou o STF em julho de 2022. A entidade argumenta que, segundo o histórico da corporação, há natureza policial de suas funções. Além disso, ressalta que as guardas municipais estão incluídas no Sistema Único de Segurança Pública como “integrantes estratégicos”, segundo a Lei 13.675/2018.

A maioria dos ministros compreende que as guardas são, sim, órgãos de segurança pública, mas o placar está empatado quanto a reconhecer a ação como legítima. Os ministros aguardam apenas o voto de Cristiano Zanin, recém-empossado na Corte.

Relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes votou a favor do reconhecimento das guardas municipais como órgãos de segurança, por entender que as guardas municipais estão sim citadas no Artigo 144, mas apenas em um item distante do primeiro parágrafo.

Enquanto o primeiro parágrafo do Artigo 144 menciona já no início a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros, apenas no inciso 8 é que as guardas municipais aparecem, no trecho: “os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.

Para Moraes, as guardas municipais têm atividade típica de segurança pública, porque suas atribuições incluem “o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações”. O relator foi acompanhado dos ministros Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Gilmar Mendes.

O ministro Edson Fachin, no entanto, abriu a divergência por não concordar que a Associação tenha legitimidade para apresentar a ação. Segundo o ministro, a AGMB não teria comprovado que se enquadra como uma entidade de classe de âmbito nacional. Nesse entendimento, Fachin foi acompanhado por Rosa Weber, Cármen Lúcia, Nunes Marques e André Mendonça.

Esses três últimos ministros consideram que, se houver entendimento de que a ação é válida, as guardas devem ser reconhecidas como órgãos de segurança pública, enquanto Fachin e Weber dizem não ver “controvérsia relevante”, por entenderem que a ação não identificou as decisões judiciais nem os efeitos específicos para motivar a ação.

O interesse do governo

Segundo o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, está nas mãos de Lula uma proposta de emenda à Constituição da pasta que inclui as guardas municipais no primeiro parágrafo do Artigo 144 e esclareça que a corporação integre os órgãos de segurança.

“Seja nessa proposta de emenda à Constituição, seja nesse julgamento do Supremo, o debate é o mesmo: se as guardas municipais integram ou não as políticas de segurança pública. Na visão do Ministério da Justiça, sim, integram e devem integrar cada vez mais”, afirmou o ministro, no Palácio do Planalto, em 21 de julho.

O impacto disso, segundo Dino, é que as guardas terão menos restrições para o policiamento ostensivo.

“Hoje há limites para a atuação das guardas. Isso depende muito de cada realidade. Às vezes, as guardas municipais conseguem fazer patrulhamento ostensivo, às vezes têm dificuldades de fazer, porque alguns juristas consideram que as guardas municipais não podem fazer patrulhamento ostensivo, só podem cuidar de bens, serviços e instalações do município, como uma espécie de vigilância patrimonial.”

A mudança pode aumentar a violência policial?

Um dos argumentos em favor da ampliação dos poderes das guardas é de que a corporação tenha mais direitos relativos a concursos e planos de carreira. Um interlocutor do Ministério da Justiça admite, no entanto, que o assunto pode gerar polêmicas entre aqueles que temem o aumento da violência policial.

A pasta não realizou uma consulta pública formal sobre os possíveis efeitos da inclusão das guardas municipais no rol dos órgãos de segurança pública na Constituição.

Dias atrás, o Superior Tribunal de Justiça proibiu que as guardas municipais façam abordagens e revistas em seus patrulhamentos rotineiros. A base para o entendimento foi justamente a exclusão das guardas do rol dos órgãos de segurança pública na Constituição e a limitação para a vigilância patrimonial.

Juristas ouvidos por CartaCapital ponderam que a mudança traria segurança jurídica ao trabalho dos guardas e pode ajudar na integração das polícias. Por outro lado, há dúvidas sobre o riscos de conflitos de atribuição no trabalho das polícias e possível aumento na letalidade policial.

Para Álvaro Palma de Jorge, professor fundador da FGV Direito Rio, a ampliação dos poderes das guardas municipais pode aumentar os riscos de abordagens abusivas. 

“Quando se concede a guardas grande porte de armas e, em seguida, custeando para que se faça parte da guarda ostensiva, há um risco de ter guardas municipais abordando pessoas dentro da função de polícia e prendendo”, defende. “Além de enfrentar os abusos costumeiros das polícias, [as pessoas abordadas] vão ter de enfrentar também os das guardas”.

O aumento do porte de armas faz menção a uma decisão do Supremo em 2021, quando os magistrados concederam aos guardas o porte de armas de fogo em cidades com menos de 50 mil habitantes. Neste ano, em outra decisão, a Corte ampliou o campo de atuação dos GCMs para a fiscalização de trânsito.

O professor salienta que, diferentemente das outras polícias, que são fiscalizadas pelo Ministério Público, as guardas não possuem este controle.

“Se prevalecer o voto do ministro Moraes, a tendência é que se possa ter um conflito com a Polícia Militar, porque você vai ter duas polícias armadas, ostensivas por parte do sistema de segurança”, aponta Jorge.

‘Em um evento do policiamento da cidade, quem vai cuidar do policiamento ostensivo? A regra constitucional é a Polícia Militar, mas se as duas estão armadas e equiparadas, quem vai fazer esse patrulhamento?’

Hédio da Silva Júnior, ex-secretário de Justiça de São Paulo e coordenador executivo do IDAFRO, sustenta que o entendimento positivo  do Supremo não daria aos guardas poder de polícia, mas sim “maior segurança para intervir em um crime, para realizar uma prisão em flagrante”.

Em relação às abordagens e a possível ostensividade da parte da polícia, Silva Júnior reitera que “para a população, especialmente a população negra, o que interessa é que haja uma integração contributiva dentro do sistema de segurança pública”, que pode ser feita através desta inclusão no sistema.

Os policiais militares de São Paulo ouvidos pela reportagem também dizem que uma possível aprovação seria uma ‘formalização do que já existe’, pois os guardas já colaboram com os oficiais apresentando ocorrências e fazendo patrulhamento.

A Comissão de Direito Militar da OAB Seção São Paulo também é a favor desta inclusão, mas “sem quaisquer condicionamentos ou limitações que as impeçam de atuar na defesa dos cidadãos na atividade de polícia preventiva e ostensiva”.

No entanto, ainda seria necessária uma regulamentação da Lei Federal 13.022/2014 para definir como esta ostensividade vai se diferenciar do trabalho da PM, em quais circunstâncias a GCM pode intervir e como essa integração entre as polícias vai acontecer.

“O pano de fundo do julgamento ainda não concluído é a extensão do poder de polícia deferido às Guardas Municipais, sobremodo para ações de combate à criminalidade”, aponta o advogado Eliezer Pereira Martins, integrante da Comissão de Direito Militar da OAB-SP.

Outro possível desdobramento seria o aceite do pedido da Associação por isonomia integral aos guardas, aponta Álvaro Palma de Jorge.

“Toda essa discussão de prisão, segurança na rua, armamento é, na minha visão, cortina de fumaça para esconder o tema central: equiparação salarial”, diz ele, com referência à petição inicial que a Associação levou ao Supremo em 2022. “Se eu faço parte do sistema de segurança pública, eu tenho que ganhar, tal qual ganham as polícias que fazem parte da segurança pública.”

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