Política
Sem pão, com circo
Diante das duras condições de vida, os festejos do Dia do Trabalhador serão um marco contra o governo. Bolsonaro tenta, porém, desviar o foco dos problemas reais


A diarista Angélica Rodrigues, de 26 anos, morreu no início de abril em um hospital na cidade de São Paulo, enquanto esperava por uma cirurgia. Ela morava em São Vicente, no litoral, e estava há duas semanas internada com queimaduras graves em 85% do corpo, causadas por um acidente caseiro. Angélica havia tentado cozinhar com álcool comum, por não ter dinheiro para comprar gás de cozinha. Na penúltima semana de abril, o botijão de 13 quilos estava caro como nunca se vira desde o início das medições da Agência Nacional do Petróleo, em 2001. Custava 113,24 reais, em média, quase 10% do salário mínimo, conforme a ANP informou no Dia da Empregada Doméstica, 27 de abril.
Na mesma penúltima semana do mês, o litro da gasolina era vendido nos postos por um valor médio de 7,27 reais, cifra recorde nos anais da agência do petróleo desde 2004. Não à toa, a Petrobras alcançou um lucro inédito no ano passado, de 106 bilhões de reais. Em 5 de maio, a companhia divulgará seus números do primeiro trimestre e serão, provavelmente, espantosos outra vez. Pior para o povão, castigado no bolso e, literalmente, na pele, como no caso de Angélica.
A inflação acelera, a carestia alastra-se, mas o capitão só pensa em defender o aliado Daniel Silveira
Os combustíveis foram os vilões da inflação de abril, conforme uma prévia do índice, divulgada no Dia da Doméstica pelo IBGE, o órgão oficial das estatísticas. O chamado IPCA-15 ficou no patamar mais elevado para o mês em 27 anos, 1,73%. De um ano para cá, acumula aumento de 12%. E, anote-se, não se trata de um fenômeno de 2022 decorrente da guerra na Ucrânia, que empurrou para cima as cotações internacionais do petróleo e dos alimentos. Em 2021, a inflação foi de 10%, a alta da gasolina foi de 47%, a do diesel, de 46%, e a do botijão de gás, de 37%.
Os combustíveis disparam em razão da postura da Petrobras de cobrar preços atrelados ao mercado externo. Com isso, o frete encarece e força mais um pouco o preço da comida transportada por estradas de Norte a Sul. Em março, uma cesta básica custava, na cidade de São Paulo, 761 reais, equivalente a 67% do salário mínimo líquido, segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, o Dieese. Em dezembro de 2018, véspera da posse de Jair Bolsonaro, saía por 471 reais, ou 53% do salário mínimo.
O piso nacional deixou de ter reajuste real a partir de 2019, tem sido corrigido apenas pela inflação. Para o ano que vem, um esboço do orçamento federal enviado pelo governo em abril ao Congresso prevê um adicional de 82 reais sobre o valor vigente, de 1.212, aumento de 6,7%. É uma das razões para o salário do trabalhador estar em níveis historicamente baixos. Em dezembro, a renda média de quem tinha uma vaga era de 2.484 reais, a menor registrada pelo IBGE desde 2012, começo da atual metodologia de cálculo. Em fevereiro, foi de 2.511 reais, a pior para o mês em uma década.
Coelhos. O STF ainda não saiu da moita. Medo dos generais? – Imagem: Nelson Jr./STF
Salários menores são a outra face da lenta recuperação do mercado de trabalho. Em fevereiro, o desemprego atingia 16,7 milhões de brasileiros, incluídos aqueles no desalento, situação em que se desiste de procurar emprego por considerar a busca inútil. A taxa de desemprego era de 11,2%, mais ou menos em linha com os níveis pré-pandêmicos (11,8% em fevereiro de 2020) e pré-Bolsonaro (11,7% em dezembro de 2018). A massa de rendimentos, contudo, é similar àquela de 2016, o segundo ano da recessão braba do abortado mandato de Dilma Rousseff, de acordo com Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas.
Diante dessa realidade, as principais centrais sindicais iriam às ruas no 1° de Maio para reivindicar melhores condições de vida e protestar contra o governo. Seria o primeiro ato pelo Dia do Trabalho após dois anos de pandemia. Mas o presidente da República não parece interessado na situação da população. Preocupa-se mesmo é com o “direito” de seus seguidores, caso do deputado federal Daniel Silveira, do PTB do Rio de Janeiro, atacarem o Supremo Tribunal Federal sem sofrerem consequências.
Origem. Lula reencontra velhos companheiros. O sindicalismo se une em torno do ex-presidente – Imagem: Charles Sholl/Brazil Photo Press/AFP
No dia em que números do IBGE e ANP expunham as más condições de vida, Bolsonaro promoveu no Palácio do Planalto um ato pela liberdade de expressão. A autocelebração bolsonarista nasceu da decisão presidencial de baixar, em 21 de abril, um decreto para anistiar Silveira de um julgamento da véspera no Supremo. Por 10 a 1, a Corte o havia condenado por tentativa de impedir o livre exercício dos Poderes (crime pela Lei de Segurança Nacional, de 1983, embora esta tenha sido revogada em 2021) e por coagir envolvidos no curso de um processo (crime pelo Código Penal). O deputado foi sentenciado a 8 anos e 9 meses de cadeia, inicialmente em regime fechado, e à perda do mandato e dos direitos políticos.
O julgamento era para ser o fim de uma história que remonta a fevereiro de 2021, ocasião em que o juiz Alexandre de Moraes, do Supremo, decretara a prisão do parlamentar por este ter, em vídeo na web, xingado e ameaçado integrantes do tribunal. Silveira era um dos alvos do inquérito que investiga as milícias digitais bolsonaristas e suas investidas contra a Corte. Ele ficou preso preventivamente até novembro de 2021. Saiu em liberdade condicional, violou-a, daí que em março a Procuradoria-Geral da República pediu tornozeleira eletrônica para ele. Silveira escondeu-se no Congresso para fugir do adorno, e o Supremo marcou o julgamento do acusado, para liquidar o assunto. Julgamento com uma surpresa: um dos dois indicados de Bolsonaro para o STF, André Mendonça, foi a favor da condenação.
Seis das principais centrais sindicais vão apoiar Lula nas eleições, união que não acontecia faz tempo
Perdoar sentenciado é permitido ao presidente pela Constituição, mas deixou Brasília de queixo caído no caso de Silveira. O Supremo ficou acuado. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas Gerais, defendeu o direito presidencial ao indulto, embora tenha ressalvado que foi uma forma de fragilizar a Justiça. O da Câmara, Arthur Lira, do PP de Alagoas, foi ao Supremo para que a cassação do parlamentar não seja automática pela Corte, mas submetida a uma decisão dos pares. O tribunal parece disposto a empurrar com a barriga ações contestatórias do indulto movidas por quatro partidos, todas aos cuidados de Rosa Weber, que assume a presidência do tribunal em setembro. Luiz Fux, o atual comandante, aproveitou o próprio aniversário de 69 anos, em 26 de abril, para reunir os colegas e conversar sobre como sair das cordas.
“Alguém acha que essa briga que ele (Bolsonaro) faz com o Supremo ajuda a gerar emprego no País? Não ajuda, liquida a economia. Ele não faz nada que resolva os problemas reais. Onde está uma reunião ou ação para baixar o preço da gasolina, para enfrentar a inflação?”, discursou da tribuna da Câmara o deputado Henrique Fontana, do PT gaúcho, durante a autocelebração no Planalto. “Bolsonaro quer distrair a população com debates que não resolvem o problema de ninguém.”
*Fonte: Pesquisa Genial/Quaest, de abril de 2022
A economia (crise, inflação e desemprego) é hoje o maior problema nacional, na opinião de 46% dos brasileiros. É o que mostra uma pesquisa da consultoria Quaest, de abril. Bem atrás aparecem saúde/Covid (14%), questões sociais (12%) e corrupção (9%). A visão popular sobre o que importa é uma das causas para 47% acharem o governo ruim (para 26% é bom e para 25%, é regular), conforme o mesmo levantamento. “O quadro econômico ainda é muito negativo e continua um problema para o presidente”, afirma o cientista político Felipe Nunes, da Quaest. Outro “dado terrível para o governo”, prossegue ele, é que 59% dos entrevistados dizem que piorou a capacidade de pagar as próprias contas nos últimos três meses.
Eis o pano de fundo do ato de 1º de Maio organizado por seis das maiores centrais sindicais (CUT, Força, CTB, UGT, NCST e Intersindical), sob o lema “Emprego, direitos, democracia e vida”. Haverá eventos em dez capitais. O mais simbólico será na Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, a partir das 10 da manhã. Ali haverá shows de artistas como Daniela Mercury e Leci Brandão. Sérgio Nobre, da CUT, torce para que seja um marco pelo “fora Bolsonaro”. É a primeira vez, em tempos, que a maioria das lideranças sindicais atuará de forma unida numa eleição. Apoiam o ex-presidente Lula, que comparecerá à Praça Charles Miller. A exceção, entre as grandes centrais, é a CSB, que, por ser ligada ao PDT, está com Ciro Gomes. A CSB promoveria um ato próprio em Itatiba, no interior paulista.
*Fontes: IBGE, Dieese e Agência Nacional do Petróleo (ANP)
**Inclui “desalentados”, pessoas que desistiram de procurar vaga
***Na cidade de São Paulo
A última vez que tinha acontecido uma união sindical igual havia sido em 2010, derradeiro ano de Lula no poder. Na época, as centrais realizaram uma Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, a Conclat, e agora, em 2022, voltaram a promover uma, por causa da situação do tipo “corda no pescoço”. A conferência aprovou um documento de 24 páginas com várias reivindicações. Pede-se prioridade à volta do reajuste do salário mínimo acima da inflação, a políticas governamentais ativas de geração de emprego e renda e a medidas que contenham o preço da comida e dos combustíveis. Lula foi o primeiro presidenciável a receber a papelada, em 14 de abril. Outros também deverão receber, se toparem. “Por mais que no dia a dia tentem tirar o movimento sindical do foco, por exemplo, a grande imprensa tirou o movimento sindical das notícias, ele se mantém firme”, disse Miguel Torres, da Força Sindical, durante um debate no Senado em 11 de abril, a reunir de forma pouco comum os presidentes das principais centrais. “Hoje, nós vivemos uma situação gravíssima, é uma situação de desemprego, de desalento, fome (…) Uma cesta básica para aquele trabalhador da base da pirâmide fica difícil de ser comprada. Não se tem dinheiro para comprar remédio”, declarou no mesmo debate Ricardo Patah, da UGT.
E o governo no 1º de Maio? Bolsonaristas fiéis prometem ir às ruas de algumas cidades em defesa da “liberdade de expressão” de Daniel Silveira e cia. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sem pão, com circo”
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