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Proselitismo e mentiras

Processada por espalhar fake news sobre abusos sexuais na ilha, a ex-ministra Damares Alves nada fez para atacar o problema

Indefesas. O número de mães com até 19 anos na ilha é o dobro da média nacional – Imagem: Eduardo Aigner/MDS
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A popularidade de Lula e do governo caiu para os menores níveis, informa uma pesquisa Genial/Quaest divulgada na quarta-feira 6. Uma das causas foi o mau humor dos evangélicos. O levantamento foi feito entre 25 e 27 de fevereiro, dias em que, por acaso, a oposição levava adiante uma ofensiva política (pedido de CPI, por exemplo) e online de apelo moral-religioso, tendo em cena a Ilha de Marajó, no Pará, lar de 590 mil brasileiros e abrigo de três das dez cidades brasileiras com o pior Índice de Desenvolvimento Humano. Em 15 de fevereiro, uma cantora gospel paraense, Aymeê, de 28 anos, havia se apresentado em um reality show na web com uma música sobre mazelas da ilha e comentado no palco: “Marajó é muito turístico, e as famílias lá são muito carentes. As criancinhas de 6 e 7 anos saem numa canoa e se prostituem no barco por 5 ­reais”. Seis dias depois, “Ilha de Marajó” era o assunto mais buscado no Google.

Abuso e exploração sexual de menores na ilha são um problema real. Há dez anos, uma CPI comandada por uma deputada federal petista, Erika Kokay, de Brasília, esmiuçava a situação e, entre outras coisas, recomendava à então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência o reforço dos conselhos tutelares no Pará. Em maio de 2023, o hoje Ministério dos Direitos Humanos despachou uma comitiva para a ilha e anotou em um relatório: “A erradicação do abuso e da exploração sexual contra crianças e adolescentes é prioridade absoluta da atual gestão do governo federal. Considerando a gravidade da situação de Marajó, este é um território prioritário para o seu enfrentamento”.

O diagnóstico foi a base de um programa lançado pelo ministério na mesma época, o “Cidadania Marajó”, substituto de iniciativa semelhante do governo Bolsonaro. O “Abrace o Marajó” foi uma obra de Damares Alves, a evangélica que era ministra da Família e dos Direitos Humanos e agora é senadora. A análise da atuação de Damares e dos resultados alcançados pelo “Abrace” mostra que a oposição não tem motivo para se orgulhar. Alta taxa de gravidez precoce na ilha, planos que não saíram do papel, corte de verba assistencial, tudo temperado por estigmatização dos marajoaras e por fake news. Não à toa, há uma ação de 2,5 milhões de reais na Justiça Federal do Pará contra a ex-ministra. Pois, se o problema na ilha é concreto, a espetacularização promovida pelo bolsonarismo serve apenas à politicagem.

A hoje senadora foi ligeira em estigmatizar os marajoaras e incompetente em implantar políticas públicas

A quantidade de mães que deram à luz quando tinham até 19 anos é alta em Marajó, o dobro da média nacional, e não mudou durante o “Abrace”. De 2018 a 2022, a taxa foi de 28% na ilha, de 22% no Pará e de 14% no Brasil, conforme o relatório de maio de 2023 da pasta dos Direitos Humanos. São perto de 12,7 mil partos por ano na ilha como um todo, dos quais 3,6 mil com mães de até 19 anos. A gravidez precoce é apontada pelo ministério como um indício do tamanho do problema de abuso, estupro e exploração sexual de menores em Marajó. Um certo olhar por cima de um “quadro histórico e atual de subnotificação” daqueles crimes na ilha, de acordo com o documento.

Damares falhou na implementação, com verba sob seu controle, de dois programas de combate ao abuso e à exploração sexual de menores. É a conclusão de uma auditoria finalizada em julho de 2023 pela Controladoria-Geral da União, órgão do governo. Os programas em questão são o Casa da Mulher Brasileira e o Famílias Fortes. Ambos foram criados na gestão Dilma Rousseff e podem ser instalados em qualquer cidade. O “Casa” é um espaço para atender e acolher mulheres que sofrem dificuldade e violação de direitos. O “Famílias” destina-se a educar mães e pais para valorizar vínculos familiares e prevenir o uso de drogas. Damares concebeu versões marajoaras. E não entregou.

O “Casa” seria na maior cidade da ilha, Breves, de 106 mil habitantes. Custaria 1,6 milhão de reais: metade do então ministério de Damares, metade do estado do Pará. Deveria ter ficado pronta em julho de 2022. A licitação foi homologada só no mês seguinte e, até janeiro de 2023, início do governo Lula, não tinha havido repasse federal, segundo a CGU. Já o “Famílias Fortes” em Marajó foi concebido para servir de teste, projeto piloto. Damares selecionou sete municípios da ilha. Agentes municipais seriam treinados a distância, eis o caráter experimental. Para tal ensino, Damares separou 554 mil reais. O treinamento deveria estar concluído em setembro de 2022. Não estava. Em dezembro de 2022, nem tinha começado. Além do atraso, a CGU concluiu que 554 mil reais eram pouco para a meta de treinar 80 agentes e atender 900 famílias.

Oportunismo. Damares tirou proveito da situação para colher votos – Imagem: Alan Santos/PR

A assistência social para dez das 17 cidades de Marajó sofreu corte de recursos com Bolsonaro. A transferência não era responsabilidade da pasta de Damares, mas, já que ela havia erguido a bandeira em defesa da ilha, poderia ter trabalhado para evitar a redução. Em 2019, os dez municípios receberam, juntos, 9,7 milhões de reais do Fundo Nacional de Assistência Social, conforme o relatório de maio passado do Ministério dos Direitos Humanos. Vivem neles dois terços da população da região. Em 2022, o repasse foi de 6,1 milhões, queda de 37%. Entre as cidades afetadas pelo corte está Melgaço, de 27 mil habitantes, pior IDH brasileiro: 780 mil reais em 2019, 435 mil três anos depois. Segundo o ministério, houve desmonte das políticas públicas em Marajó. Em benefício de quem? “Foi relatado que missionários de igrejas neopentecostais em Melgaço estariam interferindo na orientação sobre vacinação, prejudicando, sobretudo, a cobertura vacinal de crianças e adolescentes”, descreve o relatório.

A reportagem questionou a senadora sobre as conclusões da CGU a respeito do Casa da Mulher Brasileira e do Famílias Fortes. Sua assessoria de imprensa respondeu que muitas “cidades de Marajó estavam inscritas no Cadin, espécie de ‘Serasa’ dos municípios, que por não prestarem contas ficam impedidos de receber recursos diretamente” e que “um dos maiores trabalhos do ministério à época, inclusive, foi o treinamento de agentes públicos das prefeituras para que soubessem como receber e administrar recursos federais”, daí os atrasos nas obras. CartaCapital indagou ainda sobre a persistência de uma alta taxa de gravidez precoce em Marajó. Não houve resposta. Também não houve a respeito de processos judiciais existentes contra Damares relativos à ilha.

“Eu não posso falar nada (sobre violência sexual em Marajó). Inclusive, nas minhas redes sociais, eu só estou compartilhando o que está chegando, porque eu respondo a três procedimentos judiciais. Um, pelo Ministério Público, e mais dois, inclusive”, disse Damares no plenário do Senado em 27 de fevereiro. O Ministério Público Federal cobra dela 2,5 milhões de reais por danos sociais e morais coletivos causados aos marajoaras. O valor corresponde a cinco vezes o patrimônio que a parlamentar informou à Justiça Eleitoral na campanha de 2022, um apartamento de 525 mil reais. O motivo do processo são as declarações públicas que mesclam mentiras e estigmatização da população marajoara. O caso, de setembro do ano passado, corre na 5ª Vara Federal Cível do Pará, com a juíza Mariana Garcia Cunha.

O Ministério Público processa a ex-ministra por espalhar mentiras sobre a situação em Marajó

A coletânea reunida pelos procuradores inclui duas manifestações do tempo de Damares como ministra e uma com ela já fora do cargo, mas ainda na gestão Bolsonaro. Em 8 de outubro de 2022, seis dias após eleger-se e em meio ao duelo final entre Lula e o capitão, a senadora foi a um culto evangélico em Goiânia e disse que o governo tinha imagens de crianças “com 4 anos, 3 anos” cujos “dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral”. Haveria até vídeo “de estupro de crianças” de 8 dias comercializado por entre “50 mil e 100 mil reais”. Em julho de 2019, ao anunciar o “Abrace”, a então ministra disse em um evento: “As meninas lá são exploradas por não terem calcinhas, elas não usam calcinhas porque são pobres”. Em janeiro de 2020, escreveu numa rede social: “Não dá mais para suportar tanto estupro de bebês. Estou indo sábado para o Marajó e vou atrás destes bebês”.

Antes de entrar com a ação, o Ministério Público buscou internamente, no MP do Pará e no governo federal informações que confirmassem os relatos. Cadê os supostos vídeos? Houve denúncias formais sobre os alegados conteúdos? Nada foi encontrado. A ação elencou a União, ou seja, o governo federal, como corré, pois duas das manifestações de Damares foram feitas na condição de ministra. Por isso, os procuradores cobram do Estado outros 2,5 milhões de reais. Em novembro, a Advocacia-Geral da União pediu a extinção do caso, em um documento assinado por Bruno Vianna Zappelli Oliveira, à época chefe de um núcleo estratégico da AGU. Na prática, Oliveira defendeu a inocência das rés. Curioso: em 24 de fevereiro, o ministro da AGU, Jorge Messias, mandou uma repartição interna responsável pelo combate às fake news que identificasse redes de desinformação sobre Marajó. E anotou em uma rede social que a AGU ­atuaria “em colaboração com o MPF”.

Onda. Uma operação estadual foi atrás de abusadores. E a cantora Aymeê deu novo impulso às fake news que atormentam os moradores de Marajó – Imagem: Redes sociais e Polícia Civil/GOVPA

Coincidência ou não, após a onda de desinformação, a Polícia Civil do Pará fez uma operação, a Sentinela Marajó, e prendeu cinco homens: dois suspeitos de estupro de vulnerável e três, de violência doméstica. “O Governo do Pará lamenta que a situação de vulnerabilidade social seja utilizada para fins políticos ou de promoção pessoal. O governo afirma ainda que a região não apresenta índices de abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes fora da realidade nacional”, informou a assessoria de imprensa em resposta a perguntas da reportagem. O Ministério da Justiça também foi indagado a respeito do assunto e não se pronunciou. O governador do Pará, Helder Barbalho, defende criar uma espécie de Zona Franca em Marajó, para tentar desenvolver a região. Desde 2020, o ICMS na ilha está zerado, e Barbalho reivindica que o mesmo seja feito com impostos federais.

Sabe aquela auditoria sobre o “Abrace o Marajó”? Além de falhas de execução, a CGU identificou uma irregularidade de 2,4 milhões de reais. Foi em uma obra de saneamento na cidade de Salvaterra. A obra é de 2014, custa 5,6 milhões e toda a verba já foi repassada ao município pelo governo federal, via Ministério da Saúde, mas só 56% haviam sido terminadas em 2022, conforme a CGU. A empreiteira contratada pela prefeitura é de Lionel Fontinelle Barbalho Júnior, primo de Helder (este não era governador em 2014, assumiu em 2019). A CGU deu prazo até 31 de março para que fossem tomadas providências em relação à obra. A providência cabe ao Ministério das Cidades, chefiado por outro primo do empreiteiro, Jader Filho. •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Proselitismo e mentiras ‘

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