Política

Projeto visa combater a precarização do trabalho doméstico com formação e apoio habitacional

Com apoio de seis ministérios, a Federação Nacional das Domésticas propõe a volta do programa que levou a categoria às universidades e ofereceu letramento político e racial

A coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Luiza Batista, em reunião com ministérios que deu start a retomada do programa 'Trabalho Doméstico, Trabalho Decente' — Foto: SNCF/Gov
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O Brasil possui 5,8 milhões de pessoas em trabalho doméstico, o que representa cerca de 5,9% da força de trabalho do País. Em comparação aos dados do IBGE de 2012, são 2 milhões de postos a menos no setor, mas o perfil ainda é o mesmo: 91% são mulheres e 67% são negras

Em comum, há o empobrecimento das domésticas com a informalidade do trabalho — contrariando os direitos garantidos pela PEC das Domésticas — e a baixa escolaridade. 

Apenas 32,9% das trabalhadoras têm ensino médio completo e outros 3,5% possuem ensino superior (completo ou incompleto), conforme aponta um levantamento do Dieese de 2022.

Quase sempre, é esse o fator que as mantém na profissão ou as impede de buscar outros conhecimentos que gostariam de ter.

Para Luiza Batista, 67, natural da zona rural de Pernambuco, a união entre o movimento de moradia e a insistência da amiga-irmã Edicléa para retornar aos estudos, abriram novas portas para além dos quartinhos das casas dos patrões — onde havia iniciado os trabalhos ainda aos 9 anos. 

Após passar por situações vexatórias, e como ela mesma nomeia como ‘desumana’, em diferentes ‘casas de família’, a conclusão dos estudos a levariam a ser liderança sindical e hoje presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD).

Ela passou a estudar através do Projeto Trabalho Doméstico Cidadão, criado em 2006, para fornecer elevar a escolaridade de trabalhadoras que não tinham concluído o Ensino Fundamental e oferecer qualificação profissional, como curso de primeiros socorros, culinária e cuidadora de idosos. 

À época, a formação envolvia sete cidades com 30 estudantes em cada, como em Sergipe, Aracaju, Recife, Salvador e São Paulo. Ali todas as domésticas selecionadas tinham acesso a lanche, material didático e passagens inclusas para apoiar seu comparecimento às aulas durante um ano.

Afinal, todas viriam ao curso depois do trabalho e o valor do salário já estava no limite para os custeios familiares. Luiza, por exemplo, era mãe solo de três.  

Nesta formação, ela conheceu mulheres que já eram da diretoria do sindicato e viajou para Salvador para participar do 9º Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas do Brasil. Ela viria a ser coordenadora do projeto na edição seguinte e posteriormente diretora do sindicato da categoria em seu estado. 

Luiza Batista, presidente da Fenatrad — Foto: Divulgação

Em geral, um divisor de águas na busca de Luiza pela garantia de seus próprios direitos e uma virada de vida, em um cenário ao qual o modus operandi do País trata as domésticas como “quase da família” para não garantir direitos, ou até mesmo as desumanizam, como no caso de Madalena, que em plenos anos 2000, foi escravizada, e de Mirtes Renata, que viu a morte do filho ao deixá-lo sob os cuidados da patroa

Recentemente, outro caso emblemático foi a criação da “lista suja” das domésticas em um bairro elitizado da capital paulista. Um dos critérios para a não-contratação era professar uma religião afro.  

“[Além do] alto grau de informalidade e precarização no trabalho doméstico, existe uma resistência em alguns setores da sociedade, a entender a necessidade de que haja um trabalho decente para trabalhadoras domésticas que elas têm direitos trabalhistas e previdenciários como qualquer trabalhador assalariado, entendemos esse processo como parte de um racismo estrutural”, diz Laís Abramo, secretaria Nacional de Cuidados e Família a CartaCapital.

Abramo encabeça hoje a retomada de uma política pública para fortalecer o direito das domésticas. O que foi o “Trabalho Doméstico Cidadão” na época de Luiza Batista, agora voltará como “Programa Trabalho Doméstico, Trabalho Descente”. 

O programa prevê, em linhas gerais:

  • Aumento da escolaridade das trabalhadoras domésticas com EJA;  
  • Cursos de qualificação profissional;
  • Formação política de lideranças e letramento racial; 
  • Acesso dos trabalhadores domésticos a políticas públicas de cuidados, como o acesso especial a creches e políticas habitacionais, como o Minha Casa, Minha Vida feito só para as domésticas.

A atualização une o que deu certo nas edições anteriores da política, em 2006 e 2011, e amplia o acesso a mais federações — que ainda está em definição quais serão estes estados contemplados com o programa.

O governo da Bahia foi pioneiro. ”Essa era uma das prioridades, o documento do Minha Casa, Minha Vida seria no nome da trabalhadora doméstica, porque geralmente, às vezes o marido separam e ela não tem onde morar”, conta Maria Noeli dos Santos, 76, sobre o ano de lançamento do programa, onde foi mobilizadora e articulava parcerias no Rio. “O governador era o Jaques Wagner, que sempre nos apoiaram com a creche [dentro das habitações do programa]”.

Noeli, como mobilizadora, era responsável por dar viabilidade ao programa. Através de parcerias com a Escola Nordeste, a Escola Primeiro de Maio, por exemplo, foi possível garantir o espaço para as aulas. 

Maria Noeli dos Santos, 76, trabalhadora doméstica aposentada e integrante da Fenatrad — Foto: acervo pessoal

Ela esteve presente na conversa que deu origem ao programa. “Eu estava com a presidente da Fenatrad na época, a Creuza Maria e nos sentamos para falar com o ministro Antonio Almerico Biondi Lima, conhecido como Almerico Lima”, conta. 

“Ele nos perguntou o que a categoria precisava. A doméstica precisa de alfabetização, de políticas públicas e fomos falando e dali começou o TDC, nós fomos buscando os apoios – a Seppir [hoje Ministério da Igualdade Racial], Secretaria de Política das Mulheres [hoje Ministério das Mulheres], Fundo de Amparo ao Trabalhador, Pancef – Plano de Qualificação, MEC, ministério do Trabalho”. 

Hoje em dia, Abramo avalia que o projeto vem para pôr freio em um ciclo de exclusão. “Você tem realmente uma categoria que é muito importante para o funcionamento da sociedade, para o bem-estar das famílias, para cuidar das crianças, das pessoas idosas e das pessoas com deficiência, e que não é que não tem o valor do trabalho reconhecido”. 

Para conseguir colocar todas estas frentes de pé, de forma articulada e única para mais de trinta cidades e 300 trabalhadoras, o Ministério do Desenvolvimento Social, onde está alocada a pasta de Abramo, assinou no início de julho, um protocolo de intenções para o desenvolvimento do programa em parceria com o Ministério do Trabalho, das Mulheres, da Educação e da Igualdade Racial.

A projeção é de que a ação de elevação de escolaridade, junto ao MEC, e a formação de lideranças seja lançada até o final deste ano, relata Abramo, com exclusividade a CartaCapital.

A ação responde ao pedido da Fenatrad, ainda em época de campanha eleitoral.  A Federação veio a fazer parte de dois grupos de transição: Mulheres e Trabalho. 

Outro ponto de atenção do projeto ressaltado pela secretária, são as mulheres idosas que permanecem sem aposentadoria no setor.

“Há uma demanda de que haja uma atenção especial para as trabalhadoras domésticas idosas analfabetas. Isso é uma questão interessante que a gente assiste nos últimos anos, um processo de envelhecimento das trabalhadoras domésticas de aumento da porcentagem de mulheres idosas entre os trabalhadores domésticos”.

No estudo da Dieese, mencionado no início desta reportagem, mostra um aumento de 12% nas empregadas da categoria entre 45 a 90 anos, enquanto há uma queda de 10,5% na contratação de trabalhadoras de 18 a 44 anos no setor. “É uma categoria que está envelhecendo e precisa de uma atenção especial”, diz Abramo. 

Quem também plantou e colheu os bons frutos da ação foi Anazir Maria Oliveira, 90, psicopedagoga e assistente social. Ela foi professora da primeira edição do programa no Rio de Janeiro. 

“As aulas todas foram implementadas pela nossa luta básica pelos direitos, como nós domésticas poderíamos estar orientadas para ter uma compreensão maior dessa conquista”, conta. “Tenho hoje na diretoria do sindicato, meninas que passaram pelo programa e são lideranças importantíssimas na luta das trabalhadoras domésticas”.

Anazir Maria de Oliveira, 90, conhecida como Dona Zica. Pioneira no Movimento Sindicalista das Domésticas do Brasil, atua no Centro Comunitário de Defesa da Cidadania de Nova Aliança, no Rio de Janeiro — Foto: acervo pessoal

Para as formadoras, uma ação destacada por Oliveira eram as reuniões de capacitação interestadual como forma de integração e fortalecimento das domésticas. 

“Os encontros nos estados do Nordeste, Recife, Bahia, regiões diferentes, situações de trabalho distintas e a categoria conseguia transformar tudo isso em uma coisa só. Não há diferença enquanto direitos e disputas”, ressalta. “Cada momento de encontro com os outros professores sempre foi um impacto porque a gente encontra ideias diferentes, situações diferentes, mas sempre com o mesmo objetivo”. 

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